Culturas Alimentares Digitais: limites e implicações da regulação ética de proteção de dados pessoais

por Maria Vitoria Pereira de Jesus
& Daniel Coelho de Oliveira

Na Sociedade da Informação, em que a economia se baseia no conhecimento extraído de um conjunto de dados, informações pessoais dos indivíduos são de suma importância, pois funcionam como matéria-prima. Os dados digitais são recolhidos, sistematizados e utilizados de acordo com interesse das empresas. Na internet, geralmente, esses dados são fornecidos pelos próprios usuários e servem como “moeda de troca” para o acesso às redes sociais online e plataformas de streaming, como Netflix e Spotify. No entanto, também sabemos que eles podem ser obtidos através dos rastros digitais que deixamos ao navegar por uma infinidade de conteúdos e ao acessar diferentes anúncios e sites (BRUNO, 2013). Em ambos os casos, os dados pessoais colhidos e processados possibilitam às empresas de publicidade vender e aprimorar seus serviços, com base em perfis e predições algorítmicas (ZUBOFF, 2019).

Rastros Digitais

Os dados pessoais compreendem desde as informações relativas ao nome, CPF, idade e sexo, aos gostos e preferências, que se manifestam nas ações de busca, no acesso a determinada informação ou no número de “curtidas” (ou likes) que damos em postagens, conteúdos e páginas de nosso interesse em redes como o Facebook ou Instagram. Essas curtidas constituem informações relevantes, pois possibilitam o conhecimento sobre alguns aspectos de nossa personalidade que, ultimamente, têm se tornado objeto de grande interesse de empresas de diferentes perfis. A economia hoje opera por meio de uma lógica de produção baseada no conhecimento das ações e comportamentos dos indivíduos no ambiente online.

Em um estudo etnográfico no Vale do Silício, Dolejšová (2020) analisa pessoas que usam dietas com nutrientes energizados. Ela aborda a privacidade e segurança de compartilhamento de dados pessoais de rastreamento de dieta e registros médicos. Ao discutir os possíveis usos desse compartilhamento de dados para autodescoberta individual, a autora destaca os riscos de privacidade relacionados às informações contidas nos dados pessoais de automonitoramento, que podem revelar detalhes confidenciais sobre a saúde de uma pessoa. No campo das Culturas Alimentares Digitais, essas informações organizadas e sistematizadas são extremamente importantes para empresas que trabalham no ambiente digital. Por exemplo: quais comidas são mais pesquisadas pelos usuários de determinada plataforma? Em que dia e horário se concentra a compra de refeições em aplicativos? Qual o valor médio de compras de alimentos nas plataformas online?

Para compreendermos a nova lógica de produção, valemo-nos do “Capitalismo de Vigilância”, termo cunhado por Shoshana Zuboff (2019) para definir a nova fase do capitalismo, que se apresenta pautada na coleta de dados e na extração de conhecimento sobre o comportamento humano. Nessa nova etapa, a produção se encontra orientada pelas ações de consumo dos indivíduos não só no ambiente online, como também no offline, pois, nas duas situações, os dados solicitados para a efetivação da compra podem se constituir em informações valiosas para empresas que, cada vez mais, se interessam pela construção do perfil de seus consumidores, com o pretexto de aprimorar as suas experiências de consumo e otimizar o tempo gasto na busca por produtos e assuntos de seus interesses. As sugestões aparecem como “feito pra você” ou tentando nos convencer de que também gostaríamos de acessar conteúdos relacionados à nossa última busca ou aos gostos de outros usuários considerados “parecidos” conosco, seja por visualizarem um mesmo vídeo ou por visitarem o mesmo site. As sugestões são fundamentadas em predições algorítmicas que pretendem prever, intervir e influenciar ações e comportamentos baseados em fragmentos de informações que, após serem organizados, procuram realizar uma projeção da nossa personalidade, inclusive dos nossos hábitos alimentares.

Na tentativa de prever ações e comportamentos dos indivíduos que constantemente acessam os serviços e conteúdos na web, as predições algorítmicas se apoiam na mineração de dados que, por sua vez, ao extrair padrões e regularidades de um volumoso e variado conjunto de dados, possibilita a criação de perfis que serão utilizados no disparo de determinadas notícias ou ofertas para este ou aquele usuário. Por exemplo, você sabe aquele anúncio que fica aparecendo no seu perfil do Instagram ou Facebook logo após você pesquisar no Google o preço de um sofá, por exemplo? Sim, esse é um tipo de atuação dos algoritmos nas plataformas de mídias sociais. Nesse caso, geralmente, as propagandas que recebemos se baseiam em uma lógica infra ou supra-individual proveniente da atuação dos algoritmos que se valem de fragmentos de informações pessoais de diferentes sujeitos que, em alguma medida, possuem acesso à rede (BRUNO, 2008; ROUVROY, 2012). Nesse sentido, sugestões que não se detêm somente nos dados pessoais deixados ou fornecidos por esse ou aquele indivíduo podem dizer muito sobre seus interesses e sua personalidade, dado que a indicação feita considera não só as suas informações pessoais, mas também as de diversos sujeitos em relações interpessoais que, embora interajam entre si, podem se diferenciar em muitos aspectos de sua subjetividade.

No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, publicada no dia 14 de agosto de 2018) defende que, para além da proteção aos dados pessoais dos sujeitos, a lei também deve garantir o direito de proteção à personalidade. Esse é, por exemplo, um dos motivos pelos quais diversos autores, como Virgílio Almeida, Danilo Doneda e Cathy O’Neil, defendem a transparência dos algoritmos e dos dados a serem processados. Dessa forma, a lei, ao proteger os sujeitos do uso indevido dos seus dados, deverá também garantir o conhecimento sobre os dados pessoais que serão processados com a pretensão de antecipar e prever suas ações e comportamentos com base no perfil fixado, pois um erro de projeção pode contribuir para que o indivíduo não extraia o máximo de suas potencialidades e fique suscetível apenas ao acesso de determinados conteúdos e práticas algoritmicamente selecionadas (BIONI, 2019).

Deste modo, não é difícil perceber que, na Sociedade da Informação, as nossas experiências, sobretudo no ambiente online, estão sujeitas às informações extraídas dos dados pessoais que fornecemos ou deixamos ao navegar por diversas plataformas contidas na rede. Nesse sentido, num contexto em que nossas ações parecem estar cada vez mais mediadas pelas tecnologias digitais, é preciso refletir sobre a pessoalidade de nossas escolhas, ações e comportamentos, que, geralmente, são resultados de predições algorítmicas, que, ao invés de nos considerar enquanto sujeitos, se valem de fragmentos de informações pessoais espalhados pela rede. Portanto, se em acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), pretendemos efetivar o direito de proteção à personalidade, o primeiro passo é obter o controle e o conhecimento de quais dados serão processados para podermos assegurar que as sugestões consideradas relevantes para o nosso perfil online não omitam uma vasta possibilidade de acesso a outras informações, práticas, contextos e realidades.

As pesquisas realizadas no ambiente digital precisam se atentar aos impactos e riscos dos participantes, bem como as possíveis implicações aos usuários do sistema. Isso é relevante, por exemplo, para estudos com coleta de dados sobre anorexia, obesidade e suicídio, pois se não forem apresentados e sistematizados de forma cuidadosa podem produzir sérios riscos aos receptores das informações. Para finalizar, gostaríamos de destacar algumas agendas de pesquisa para futuros trabalhos e que têm estimulado cada vez mais as reflexões do Mesa Digital. Primeiro, como podem ser viabilizados o “consentimento livre esclarecido” nas pesquisas sobre culturas alimentares digitais, para cada um dos atores envolvidos? Segundo, de que maneira é possível minimizar o risco informacional, considerando que, de acordo com Salganik (2019), o potencial dano informacional na divulgação de informações pessoais pode ser econômico (por exemplo, perder um emprego), social (por exemplo, constrangimento), ou psicológico (por exemplo, depressão)?

Terceiro, a empatia acadêmica é uma boa receita para fazer julgamentos éticos coerentes em pesquisas sobre culturas alimentares digitais, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro é uma das melhores ferramentas para se conduzir o trabalho? Diante dessas inquietações em diferentes perspectivas, como distintos grupos étnicos e identitários podem ser afetados pela divulgação de um determinado resultado?

Referências:

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Brasília – DF, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709compilado.htm. Acesso em: 29 de agosto de 2022.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Resolução nº 466, de 2012.
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
BRUNO, Fernanda. Monitoramento, classificação e controle nos dispositivos de vigilância digital. Revista FAMECOS. Porto Alegre, n. 36, p. 10-16, agosto, 2008.
DOLEJŠOVÁ, Markéta. FROM SILICON VALLEY TO TABLE: Solving food problems by making food disappear. In: In: LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital Food Cultures. New York, Routledge, 2020.
ROUVROY, Antoinette. The end(s) of critique: data-behaviourism vs. due-process. In: ROUVROY, Antoinette. Privacy Due Process and the Computational Turn. Philosophers of Law Meet Philosophers of Technology. Routledge, 2012.
SALGANIK, Matthew J. Bit by bit: Social research in the digital age. Princeton University Press, 2019.
ZUBOFF, SHOSHANA. The age of surveillance capitalismo: The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2018. Resenha de: EVANGELISTA, Rafael. Surveilance & Society, New York, v. 17, n. 1/2, p. 246-251, march, 2019.