O Projeto e Grupo de Pesquisa “Culturas Alimentares Digitais” tem a honra de ir (virtualmente, claro!) até Itacaré (BA) para conversar com Renata Sirimaco1, a co-criadora do Auêra Gastronomia, empresa socioambiental que oferece consultorias e cursos sobre as plantas da negritude e cozinhas afro-brasileiras.
Bióloga e etnobotânica, Renata conversa conosco sobre as plantas comestíveis afro-brasileiras, tecnologias digitais e ancestralidade. Para ela, ancestralidade é uma força, uma escolha, mas também a compreensão histórica de onde viemos, o que nos sustenta e o que nos guia.
1. Como surgiu e o que consiste o Auêra?
Co-criei o Auêra em 2017 e, no início, a gente tinha a intenção de compartilhar o conhecimento sobre plantas comestíveis que, na atualidade, são muito conhecidas como plantas alimentícias não convencionais. A gente criou essa empresa com intuito de compartilhar esses conhecimentos através de venda de comida, que a gente vendia produtos à base de vegetais e com serviços como cursos, oficinas ao ar livre…
Quando vim para Itacaré (2018), no sul da Bahia, trouxe a Auêra comigo e minha perspectiva e entendimento sobre o que são plantas alimentícias não convencionais mudou. Me deparei com um confronto dentro de mim do que significa ser “não convencional” e onde vem essa tal convencionalidade. Quando morei num quilombo urbano, em Itacaré, comecei a perceber que realmente essa “não convencionalidade” foi uma invenção.
Em 2018, no mestrado, comecei a estudar mais sobre cultura alimentar afro-baiana e culturas alimentares afro-brasileiras, passando a entender que muitos desses vegetais que são considerados não convencionais, na verdade, estão no repertório de conhecimento tradicional de muitos povos e culturas afro-brasileiras.
2. O que são as plantas da negritude?
São os vegetais afrodiaspóricos e nativos brasileiros que foram africanizados e assim formam esse conceito “plantas da negritude” ou seja plantas comestíveis que fazem parte do repertório de conhecimento negro africano. Por conta desses vegetais que também foram africanizados a partir dos olhares negros.
Esse vegetais africanizados ganharam novos significados a partir de uma reorganização de culturas alimentares de origens africanas. Os mesmos já estavam aqui e foi no processo de diáspora africana, que conseguiram voltar aos seus significados do que é comestível nesses vegetais que já estavam aqui. Então o conceito de plantas da negritude, para além dos vegetais africanos que vieram na diáspora, a gente também tá falando sobre esses vegetais que foram africanizados. O conceito de plantas da negritude engloba ambos.
Têm uma etnobotânica, a Sueli Conceição que fala que a população afro-brasileira possui uma cultura vegetal. Se a gente pensar nessa cultura vegetal e ampliar, pensando na diáspora, a gente vai entender que essa diáspora negro africana não foi só de pessoas, ela foi de entidades, culturas e sistemas de conhecimentos. As sociedades africanas vieram para cá, de forma forçada, enquanto mão de obra especializada, pois tinham um amplo conhecimento agrícola, botânico. Houve uma forma de manutenção desses conhecimentos em relação à cultura alimentar a partir desses olhares negros; houve uma maneira de reorganizar o seu conhecimento em relação aos vegetais comestíveis, diante de uma inteligência muito grande de pensar que esses vegetais nativos brasileiros possuem similaridade com vegetais africanos. Então, aconteceu um processo de reexistência e permanência de conhecimentos nesse novo território.
3. Você disse que a população afro-brasileira possui uma cultura vegetal, o que você quer dizer com este termo?
A cultural vegetal nos mostra como as populações afro-brasileiras, principalmente de matriz africana, mantém uma organização e uma forma de se relacionar com o mundo vegetal, seja ele comestível, litúrgico ou medicinal. A percepção das folhas é mantida e organizada dentro de códigos, condutas, práticas e tradição que são oriundas do continente africano suas práticas junto as folhas a partir a partir do continente africano.
4. O que é ancestralidade pra você?
Nossa tanta coisa. Mas eu acho que ancestralidade é uma força vital, viva que tá no nosso DNA, mas não nosso DNA não genético, no nosso DNA que a gente entende enquanto princípio e lugar. Se eu parto de uma tradição de matriz africana e, se a gente for pensar em espiritualidade, a gente fala de força ancestral, mas enquanto algo que está inato dentro de nós. A gente entende que a nossa alma e o nosso espírito não vão para um vazio. Acho que a ancestralidade é uma força. Parto de uma perspectiva preta dentro de pessoas pretas na diáspora, de pessoas pretas africanas. Acho que é muito subjetivo falar sobre ancestralidade, mas entendo que é uma força que conecta a nossa humanidade, comunidade e nos engradece.
5. E o que você entende por comida ancestral?
Comida ancestral, é uma comida que nos conecta com uma história que não começou numa escravização, mas que começou num outro continente, com diferentes sociedades africanas e que, através de uma diáspora e da inteligência da comunidade, conseguiu reorganizar, preservar e perpetuar essas comidas. Acho que ao pensar comida ancestral a gente deve acionar nossos valores civilizatórios e nosso valor enquanto povo para seguir perpetuando e mantendo essas comidas.
6. No caso, pra você, comida ancestral não é necessariamente uma comida festiva ou ritualística, mas pra você, comida ancestral pode ser o alimento do cotidiano?
Acho que uma coisa não exclui a outra. Podemos pensar em comida ancestral no sentido do litúrgico, sagrado e ancestral porque a gente preserva sua conservação de alguma maneira. Mas comida ancestral pode ser acarajé, por exemplo, porque ele ganhou as ruas, e é um alimento que vem de dentro do terreiro.
Falar sobre ancestralidade, sobre essa força que nos conecta com a nossas origens e com o nosso presente, não pode ser o mesmo que falar de religiosidade, porque são coisas diferentes. É por isso eu acho que comida ancestral pode estar em outro lugar.
7. Como você entende a comida, a ancestralidade e o papel da mulher neste processo?
As mulheres negras, sempre tiveram um papel fundamental com funções muito proeminentes e inteligentes. A gente tem um histórico de mulheres negras que eram exímias vendedoras no continente africano que trouxeram essa tradicionalidade na diáspora. Por exemplo, as mulheres negras até hoje, vendem seus produtos, suas ervas, seus vegetais, são agricultoras, cozinheiras.
Esse histórico de tradição serve de registro das funções importantes e significativas exercidas por mulheres negras. No presente, isso se mantém e podemos ver, nesses espaços de troca e negociação, mulheres em lugares proeminentes tendo a sua autonomia e empreendendo.
8. Como você vê a relação das novas tecnologias digitais com a ancestralidade?
A população negra sempre usou e inventou tecnologias. Podemos começar pelas tecnologias ancestrais, em que Ogum é o Orixá do da metalurgia, do ferro e do aço. De acordo com os princípios iorubá, foi ele quem nos ensinou a forjar o ferro para os primeiros equipamentos para agricultura ao criar o material para enxada, por exemplo. A tecnologia digital também pode ser uma tecnologia utilizada para manter e reproduzir a ancestralidade, pois quando a usamos para nos comunicar com outras pessoas da nossa comunidade sobre os nossos fazeres, habilidades e conhecimentos, que são nossos, estamos usando a tecnologia para potencializar esses conhecimentos.
9. No seu Instagram, tem um post que você menciona o termo “Columbusing”, no qual, como você mesma descreve, é “o termo em inglês designado para falar sobre algo que já existe há um grande período de tempo, inserido dentro de uma determinada cultura/grupo social/etnia e que mesmo assim, é aparentemente “descoberto” pelo grupo dominante”. Neste mesmo post, você questiona sobre como este movimento de “descoberta” da cultura hegemônica sobre os ingredientes consumidos por grupos que já utilizam tradicionalmente em seu cotidiano alimentar, pode ser prejudicial, caso a história e origem não sejam devidamente narradas. Na sua opinião, a internet contribuiu para o columbusing das plantas ancestrais africanas?
Eu acho que ao mesmo tempo que a gente tem uma maior divulgação de conhecimentos, já que se consegue construir pontes através da internet e acessar e estar mais perto de pessoas da nossa comunidade. Ao mesmo tempo as informações e a forma com o que as informações são divulgadas são fluídas, no sentido temporal, portanto, em muito dos casos se vê muitas cópias de conteúdos e repetição de temas.
Acho que a gente tem que entender o que significa plágio, o que significa cópia, o que significa referência. Porque isso é, também, não perpetuar o epistemicídio e o apagamento histórico em relação à população negra, o que a gente chama de epistemicídio. Eu mesma já sofri diversos plágios. Tem conteúdo meu que tá por aí e as pessoas não dão os devidos créditos. Eu acho que é um contraponto que a gente precisa fazer. Se a gente está querendo compartilhar os saberes da população afro-brasileira, compartilhar os saberes dos mais velhos, que esses mestres e mestras sejam referenciados também para que não haja o apagamento de quem produziu e perpetua o conhecimento. Porque parece que realmente a roda ta iniciando e, na verdade não, tá fazendo o colombismo, arte de descobrir algo que já existe, uma prática ocidental branca. Os vegetais que são considerados PANC, por exemplo, eles já existiam, eles já estão no sistema de conhecimento tradicional e ancestral de povos indígenas, povos quilombolas, dos povos de terreiro, das comunidades negras rurais.
Então, é importante se contrapor a essa prática quando a gente vai produzir, o que quer que seja, na internet.
Para conhecer o projeto Auêra Gastronomia,
acesse o Instagram: @_aueragastronomia
- Renata Sirimarco é uma estudiosa das folhas. Bióloga, Etnobotânica, professora de Ciências e Educação Ambiental, é pesquisadora de plantas comestíveis desde 2014 pelo Laboratório de Botânica Econômica e Etnobotânica (LABOTEE/UFF), tendo como enfoque os vegetais nativos brasileiros, africanos e afrodiaspóricos (texto disponibilizado pela entrevistada). ↩︎