Nada que eu diga são palavras minhas

Texto escrito com o apoio do Arthur Saldanha (UFRGS), membro do projeto Culturas Alimentares Digitais.

O que é ancestralidade? Qual a diferença entre ancestralidade e tradição? Esses foram os questionamentos iniciais que fomentaram o interesse de pesquisa deste informativo. Ambas perspectivas (a da tradição e a da ancestralidade), principalmente no âmbito culinário, têm-se popularizado. Cada vez mais, encontramos estes termos sendo usados para delimitar identidade, história, modo de produção alimentar e, até mesmo, termos como estratégia comercial de venda. Assim, nessa miscelânea, perguntamos primeiro ao chat GPT qual é a diferença entre tradição e ancestralidade.

[…] A comida ancestral e a comida tradicional são conceitos relacionados, mas não são necessariamente a mesma coisa. Ambos se referem a alimentos e práticas culinárias que têm raízes profundas na história e na cultura de um determinado grupo ou região, porém, a principal diferença entre comida ancestral e comida tradicional está na profundidade da conexão histórica e cultural. A comida ancestral é específica de um grupo étnico ou comunidade e tem uma ligação direta com suas raízes culturais profundas, enquanto a comida tradicional é mais abrangente e pode incluir pratos típicos de uma região ou cultura, mesmo que não tenham a mesma história ancestral profunda (CHAT GPT, 2023).

Resumidamente, os algoritmos não responderam ao nosso questionamento. Quais são suas principais especificidades? Será a ancestralidade ligada a uma prática alimentar espiritual e já a tradição não ter essa necessidade? Qual ancestralidade e qual tradição estamos abordando? Existe ancestralidade no ambiente digital? Como pensar práticas espirituais ancestrais na internet? Só existe ancestralidade, se existir tradição?

O primeiro ponto a ser observado é que a ancestralidade está ligada à compreensão histórica de que tudo o que se tem, o que se produz e o que se comunica é resultado de um processo histórico, que foi permeado a partir da tradição (práticas e ritos que se perpetuaram e se reconfiguram ao decorrer do tempo). A tradição só se mantém viva, se ela faz sentido no tempo presente (MARIANO, 2019). Portanto, entender a ancestralidade é compreender que existe uma perpetuação cultural histórica, na qual se reconfigura.

A ancestralidade está em tudo e em todos. No entanto, nem sempre nos damos conta da sua dimensão. Assim, entendendo a multiplicidade do que é a ancestralidade, sugerimos, nesta edição, pensá-la a partir das práticas alimentares afro-brasileiras, na perspectiva que contrapõe/questiona a lógica colonizadora europeia da alimentação — uma afroperspectiva1 da alimentação ancestral.

Compreendemos que o processo de colonização no Brasil ocorreu a partir da concepção falocêntrica, branca e ocidental (BONFIM, 2009). Antes da vinda dos colonizadores, o Brasil já era povoado por diferentes etnias originárias indígenas. Assim, com a colonização, o domínio, as mortes e a vinda forçada das pessoas negras na condição de escravos fizeram com que esse período histórico se desenvolvesse a partir do processo de imposição cultural e de subalternidade dos povos originários indígenas e dos povos africanos dominados.

De acordo com Bonfim (2009), pensar a história brasileira a partir do período colonial é compreender as delimitações conjuntas da raça e gênero. De acordo com a pesquisadora,

[…] Esse marco histórico ele constrói uma areia movediça para compreender as multiplicidades indígenas e negras do Brasil, já que nessa época, já havia uma demarcação cultural instituída enquanto o homem negro e a mulher negra eram um “outro total” quando pensado em relação ao fenótipo branco. Portanto, “trata-se, em última análise, da continuidade de uma bem estruturada organização social arquitetada eminentemente sobre a exploração e a obliteração do outro fenotípico (Monroe, 2017).” (BONFIM, 2009, p.222).

Com esses apontamentos, compreender a ancestralidade afro-brasileira na alimentação é, portanto, repensar as narrativas e as práticas alimentares criadas a partir do olhar colonizador. A população negra, ao se tornar escrava, perdeu seus direitos e foi transformada em objeto, foi reificada (coisificada): suas ações e práticas culturais foram, durante muitos anos (e ainda persiste em muitas situações), interpretadas como “exóticas”, “subalternas” e “pejorativas”. Afinal, o negro se torna objeto exclusivo da exploração laboral e sexual (BONFIM, 2009).

É importante destacar que, na verdade, os negros escravizados foram trazidos devido às suas habilidades laborais. Apreendida em diferentes regiões e etnias africanas, a população negra trazida para o Brasil era composta por mão de obra qualificada: ferreiros, agricultores, raizeiros, cozinheiros e, às mulheres, eram delegadas as funções da casa, cozinha e reprodução, entre outras. Desse modo, para entender a ancestralidade, é preciso reconhecer que a ancestralidade afro-brasileira não se resume à chegada dos negros no Brasil, mas é resultado da conjunção de práticas, de culturas diversas e de saberes que, forçadamente, são obrigados a se reinventar em um novo contexto político, social, cultural e territorial forjado na crueldade e tentativas de apagamento desses povos. De acordo com Bonfim (2009), para entender a história negra no Brasil é necessário,

[…] Em primeiro lugar, há que se descartar a ideia de que a história dos negros e negras se resume a períodos de subalternização por outros grupos culturais e raciais. Com efeito, em cerca de 8.000 a. C. – a partir do início da revolução agrária do Neolítico -, as populações africanas se organizaram em complexas sociedades, nas quais a primazia na ordem social correspondia à mulher. Essa primazia que em muitos casos se mantém intacta até hoje na África, apesar das grandes mudanças ocorridas ao longo da histórica (colonização, tráfico negreiro atlântico, e assim por diante), constituiu-se como uma característica marcante das civilizações africanas (…) até o advento do islã e do cristianismo na Àfrica, a maioria das sociedades era matricêntrica, a saber, matrilineares e matriarcais, embora num contexto de hegemonia masculina no campo militar e político (BONFIM, p. 224, 2009)

Sendo assim, partimos da ideia de que a ancestralidade afro-brasileira foi construída e é permeada, principalmente, em espaços de resistência, como terreiros da umbanda e candomblé, quilombos e comunidades negras rurais, bem como plantas da negritude. As sociedades afrocentradas no nosso País que, muitas vezes, são entendidas como tradicionais (ou originárias, em seu termo mais atual), possuem como caráter comum serem espaços de resistência nos quais a oralidade, a cooperação, a partilha e a característica do corpo-território como fundamento da tradição afro ancestral. Sendo assim, a espiritualidade e a compreensão da saúde como fator de cuidado de si estão atreladas à comunidade social e territorial.

Dito isso, ressaltamos que as práticas alimentares ancestrais afro-brasileiras não se restringem a esses espaços de resistência, “[…] pois nada que eu diga, são palavras minhas” (RIBEIRO, 2022). Essas práticas fazem parte da nossa história, do nosso cotidiano. Convidamos você a pensar conosco sobre ancestralidade, a partir de diferentes espaços e, portanto, como parte de nós, já que as práticas alimentares ancestrais não se restringem aos povos tradicionais, mas eles tendo papel fundamental em sua transmissão (GUEDES, 2022). Por isso, aqui, pelo ambiente digital, desejamos partilhar esse momento de reflexão, de leitura e de transmissão de valores e história que se mesclam através do nosso prato e pela internet.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Ação Coletiva Comida de Verdade (Brasil de Fato e Futuro Possível). Cozinhas ancestrais mantém vivas as memórias dos povos indígenas e de matriz africana no Brasil. Disponível em: https://mst.org.br/2020/09/24/cozinhas-ancestrais-mantem-vivas-as-memorias-dos-povos-indigenas-e-de-matriz-africana-no-brasil/. Acesso em 09 dez. 2023.

BONFIM, Vânia M. da S. A identidade contraditória da mulher negra brasileira: bases históricas. In: Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. NASCIMENTO, Elisa L. (org). Selo Negro Edições, São Paulo, 2009.

GUEDES, Aline. Conheça alimentos da gastronomia ancestral; tema será debatido no World Creativity Day, em Salvador. Matéria realizada por ACIOLI, Natally. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/04/20/conheca-comidas-da-gastronomia-ancestral-tema-sera-debatido-no-world-creativity-day-em-salvador.ghtml . Acesso em 09 dez. 2023.

NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: Elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, v.3, n.6, nov. 2011. p.147 – 150. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/renato_noguera_-_ubuntu_como_modo_de_existir.pdf. Acesso em 20 dez. 2023.

RIBEIRO, Katiusca. Katiúsca Ribeiro explica ancestralidade e sua presença na cultura diaspórica | O Futuro é Ancestral. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h03cAD1EKNw&t=160s. Youtube, Canal Gnt. Acesso em 9 de dez. 2023.

SIRIMARCO, Renata. Uma história que não começou com a escravização. Informativo Mesa Digital, 5.ed. On-line. 2023. Disponível em: www.mesadigital.org.

  1. Afroperspectiva pode ser compreendida como ”o conjunto de pontos de vista, estratégias, sistemas e modos de pensar e viver de matrizes africanas (NOGUERA, 2012, p. 147)”. Desse modo, entender a ancestralidade da comida a partir de uma afroperspectiva é refletir sobre a história, estratégias, sistemas e culturas produzidas pelas pessoas negras no Brasil. ↩︎