Cyberaxé: outros espaços do Candomblé

por Luiz Fábio Pinheiro Lima1
& Jessica Santana Silveira Dias2

O Candomblé é uma religião afro-brasileira, derivada de cultos tradicionais africanos, que atualmente se encontra espalhada por todo o Brasil e possui como uma das características principais a crença no transe provocado por divindades chamadas genericamente de N’Kisse, Vodun ou Orixá, dependendo da nação ao qual pertence – Jeje, Nagô ou Angola. As divindades possuem uma força, uma energia, uma ancestralidade que, tanto no Brasil como na África, são incorporadas e manipuladas pelo sacerdote ou sacerdotisa por meio de invocações, cantos, rituais e sacrifícios. Os ancestrais se manifestam em rituais e cerimônias junto aos humanos. Por intermédio da dança sagrada, o ancestral reafirma a sua força e poder entre o mundo dos humanos (ADOLFO, 2010).

As práticas alimentares despertam reflexões de uma forma densa, pois falar de comidas, alimentação e rituais revela construções sociais e culturais de um grupo. A necessidade de se alimentar envolve diversas informações, uma vez que escolher o que come, como come e onde come contribui para criar e desenvolver o próprio alimento. Para Lévi-Strauss (2004), o surgimento da cozinha e a comensalidade, ou seja, o ato de comer em grupos, compartilhar aquela comida, permitiu ao ser humano romper os limites do viés biológico e atribuir às refeições interações sociais.

Ao pensarmos sobre as particularidades do mundo da comida, somos convidados a refletir sobre territórios, símbolos, memórias, cosmopercepções e cosmologias desses lugares onde a comida habita e se faz habitada. A comida ocupa um papel fundamental na cultura afro-brasileira, revelando um lugar de pertencimento e de resistência. As experiências vividas no Terreiro potencializam a ideia da vida como troca e partilha e, ao mesmo tempo, exaltam o cotidiano como sagrado, pois é nele que partilhamos as nossas trocas, existências e de saberes.

Muitos fundamentos das religiões de matriz africana passam pela cozinha. Diversos pratos para os ancestrais são produzidos a partir da energia vital, para que, assim, eles recebam aquela comida como demonstração de afeto, de cuidado, de cura e de renovação de votos com o sagrado, destacando a preservação do culto ancestral, uma vez que as práticas alimentares dos povos de terreiro revelam sobre a identidade daquele povo. Comer no terreiro é muito mais do que se alimentar, é adquirir saberes e ensinamentos sobre os ancestrais. Comer no terreiro é compartilhar memórias, saberes e construções identitárias.

A cozinha no Terreiro se torna umas das ferramentas de sociabilidade e de aprendizado para a comunidade. Comer é importante, mas estamos adentrando territórios onde comida, objetos, ancestrais, animais e pessoas comem, interagem e (re)produzem relações evidenciando a riqueza dos saberes envolvidos na transmissão de valores e ensinamentos. Quando os agentes envolvidos nos afazeres alimentares do Terreiro compartilham e trocam saberes, são desenvolvidas e aprimoradas as técnicas e capacidades cognitivas dos filhos e filhas de Santo.
Para além da cozinha, existem outros ambientes do Terreiro que também revelam sensibilidades, habilidades manuais e técnicas que agregam na formação das identidades. Esses ambientes somam-se à cozinha no processo de formação dos filhos de Santo.

As comidas de Santo são feitas para fortalecer os laços entre os membros da família de Santo com seus Orixás e cuidar desses laços. Os alimentos ofertados baseiam-se na concepção da troca, da circulação de energias e dádivas mútuas.

Dentro do Terreiro não é só a nossa boca que come, o corpo também come, a cabeça come, tudo come. O ato de dar comida à cabeça é uma forma de revitalizar a mente. Além disso, o corpo come por meio do ebó, uma limpeza ritualística profilática ou curativa, pela qual são passadas as comidas específicas no corpo como forma de retirar mazelas; dessa forma, a comida é que age para retirar infortúnios.

Todavia, quando esse processo é exposto nas redes sociais, consegue transmitir os rituais, conhecimentos, ancestralidade e outros, da mesma maneira que no Terreiro? É possível que as práticas envolvidas no preparo das comidas de Santo, que possuem diversas especificidades — a forma de cozinhar, o movimento e direção da colher ao mexer a comida, o que não pode queimar, os barulhos que não se pode fazer durante os preparos, além de muitos outros atos minuciosos que ligam a vida do homem à ancestralidade a que ele pertence — sejam divulgadas e absorvidas da mesma de mesma forma ou modo pelo qual a oralidade e o contato que o Terreiro propicia?

Esses questionamentos e suas respostas estão inseridos em um campo de conflito, produzido pela relação das mídias sociais com o candomblé. A comunidade religiosa do candomblé, assim como as outras pertencentes às religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras, viram nas capacidades de exposição, de compartilhamento e de interação que as mídias sociais oferecem, a oportunidade de terem voz ativa diante de um cenário histórico de intolerância religiosa; a valorização de sua memória ritualística; a difusão de sua cultura e o fortalecimento de laços com grupos de candomblé do Brasil e do mundo, por exemplo. Mas encontraram também a ameaça que a superexposição nas mídias pode representar a dois pilares existentes dessa religião: a tradição oral e o culto ao segredo (CORTEZE; JUVÊNCIO, 2022).

O campo da alimentação exprime bem essa dualidade de visões quanto à exposição nas mídias. As práticas alimentares dos povos de terreiro possuem uma amplitude de dimensões ricas em vivências, tradições e saberes. A conexão entre alimentação e religião proporciona às pessoas inseridas no campo das religiões de matriz africana um conjunto amplo de hierarquias, símbolos e referências, valores e normas que interligam o mundo divino dos deuses com o mundo dos seres humanos. Isso se materializa, por exemplo, em um embate intenso que existe entre a dicotomia da alimentação e da religião sob a ótica do veganismo e os sacrifícios animais propostos em rituais pelas religiões de matriz africana, incluindo o candomblé.

No ano de 2018, uma determinação do Supremo Tribunal Federal, que legalizava o sacrifício de animais pelas religiões afro-brasileiras, motivou debates intensos nas mídias, entre grupos veganos a respeito da legitimação da prática. O Movimento Afro Vegano (MAV)3, que surge como uma opção que apoia a integração de pessoas negras e marginalizadas ao contexto vegano, posicionou-se em todas as suas plataformas de mídias sociais, reiterando que, como veganos, o sacrifício animal é algo condenável, entretanto, como ativistas do movimento negro, entendiam que a problemática desse conflito ia além do ato de sacrificar animais, mas estava ligada ao preconceito, à violência e à marginalização que as religiões de matriz afro-brasileiras sofriam por parte da sociedade brasileira, não só por fazerem oposição ao modelo de religião cristã, em um país majoritariamente cristão, como o Brasil, mas por se tratar de práticas religiosas que têm sua origem em uma população negra, escravizada ou não, que, em território brasileiro, encontra-se refém de uma dinâmica social imposta por uma sociedade escravocrata que os classifica como inferiores (SOUZA;HOFF, 2022; MAV, 2018).

Esse debate, que aconteceu, majoritariamente, on-line, é motivado por uma prática que acontece no Terreiro e que representa a reprodução de uma ação simbólica, identitária e ancestral do candomblé, que ultrapassa o território físico e vai ser “matéria” no on-line. O autor Lúcio André Conceição (2018) definiu um conceito que abarca a relação do território digital e das ações que acontecem no Terreiro, intitulado de o Ciberaxé:

[…] O ciberaxé são as homepages, os blogs, os espaços on-line em plataformas digitais (de vídeo, imagem e texto) que veiculam serviços religiosos, compartilham as atividades do terreiro (fotos e vídeos dos rituais, dos membros, das festas, das comidas, dos objetos e dos vestuários sagrados etc.), propiciam interação com outros membros e simpatizantes, troca de saberes do culto, denúncia e combaterem violências, discute temas diversos, etc. O ciberaxé são, portanto, os diferentes espaços on-line, nos quais se dá a difusão de sons, imagens, vídeos e textos com conteúdo sobre candomblé (CONCEIÇÃO, 2018, p. 65).

A inspiração ao neologismo vem do termo “cibercultura” de Pierre Lévy (1999) e, nesse novo termo, Ciberaxé, o “ciber.” faz a mesma referência “ciber” que serviu de inspiração para criação do termo, ou seja, a expressão quer lembrar as redes, a tecnologia e a internet de maneira mais ampla; enquanto o “axé” é uma palavra de origem Yorubá que significa força vital, e faz referência à ancestralidade, à identidade e à força como elementos fundamentais do candomblé. Reafirmar a união dos espaços on-line e plataformas mídias sociais que veiculam atividades, rituais e interações que ocorrem no Terreiro, é visto como algo que adiciona complexidade a um tema tão rico como a alimentação nos Terreiros e encontrar um espaço de conflito em que a exposição nas redes pode gerar efeitos considerados positivos e negativos e trazer as comunidades do candomblé ferramentas para intensificar o debate sobre as ações e os esforços e dedicações para propagarem suas tradições.

REFERÊNCIAS

ADOLFO, Sérgio, e Nkisi Tata Dia Nkusu Paulo. Estudos sobre o Candomblé Congo-Angola. Londrina: Eduel (Editora da Universidade estadual de Londrina), 2010.

CONCEIÇÃO, Lúcio André Andrade. Ciberaxé: contribuições para um campo em construção. Revista Espaço Acadêmico, v. 18, n. 207, p. 63-74, 2018.

CORTEZE, Fernando; JUVÊNCIO, Carlos Henrique. O fenômeno da internet na religião oral: a influência das mídias sociais no candomblé. Revista Conhecimento em Ação, p. 80-97, 2022.

LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. São Paulo: Editora Cosac & Naif, 2004.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MAV – MOVIMENTO AFRO VEGANO. Posicionamento do Movimento Afro Vegano sobre a RE 494601. [S. l.], 9 ago. 2018. Facebook: @MovimentoAfroVegano. Disponível em: https://bit.ly/3QctnMS. Acesso em: 12 de janeiro de 2023.

SOUZA; Antônio; Hoff, Tânia. Movimento afrovegano: discurso interseccional no cruzo do racismo com o especismo. 2022.

  1. Mestre em Desenvolvimento Social – PPGDS/Unimontes. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros. Integrante do ETU- Grupo de Pesquisa e Estudos em Terreiro. Pesquisador do Observatório das Desigualdades e Discriminações Étnico-Raciais.
    ↩︎
  2. ** Mestre em Sociedade, Ambiente e Território pela Universidade Federal de Minas Gerais e Unimontes. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros. Integrante do Grupo de Pesquisa Culturas Alimentares Digitais (Mesa Digital/Unimontes). ↩︎
  3. O Movimento Afro Vegano (MAV) foi criado em 2015, por jovens pretos e periféricos, com o intuito de defender um arcabouço de ações direcionadas a defesa de um veganismo que promove a sustentabilidade; a exclusão de toda opressão de animais humanos e não humanos; a inclusão social e a visibilização da população negra, respeitando suas tradições, costumes e ancestralidade (SOUZA;HOFF, 2022; MAV, 2018). ↩︎