Bom mesmo é estar debaixo d’água, mas hoje o negócio é com fogo!

Stanley Albano é natural de João Monlevade (MG), tem 29 anos, é negro e cresceu na periferia. Essas demarcações identitárias marcam o seu trabalho no audiovisual e na cozinha. Atualmente, reside em Belo Horizonte (MG) e é dono do bar Mandak Nega, localizado no quintal da sua casa.

Em 2019, abriram o bar, mas com a pandemia, Stanley teve que se reinventar. Ele criou coragem de vender comida via delivery e, em conjunto, começou a produzir vídeos descontraídos sobre comida e sua trajetória profissional.

Os vídeos logo viralizaram. Era a principal propaganda do seu empreendimento, via internet, recebeu mensagens de pessoas de diferentes regiões do país dizendo que desejavam conhecer o estabelecimento.

Na mesma época, Stanley começou a produzir curtas metragens que foram premiados. Além de cozinheiro, se tornava cineasta. Em agosto de 2023, publicou no Youtube a websérie “Mandraka Chef1”, o reality show sobre culinária mineira da quebrada. No programa, a quebrada2 mostra a sua cara. Nos 9 episódios, a competição se mistura à cooperação, envolvendo cozinheiros amadores da periferia da região de Belo Horizonte (MG). A atitude vira o ingrediente principal e a cozinha demonstra sua potência como espaço ancestral de afeto, fartura, aprendizado, criatividade e diversão.

1. Primeiro, gostaria que você contasse um pouquinho como surgiu a ideia do programa e como vocês se organizaram.

Eu tinha escrito o projeto na pandemia e escrevi na correria…, mas aí, depois de aprovado, eu fui realmente ver o que eu precisava na planilha e me deu um desespero! Não tinha colocado equipamento no orçamento, não tinha colocado fogão… não sabia como ia funcionar… eu comecei a pensar como eu ia fazer, como eu ia colocar nove pessoas numa cozinha, nesse quintal, como que ia funcionar? Nó, eu fiquei doido! E aí como o edital foi aprovado, eu tinha que cumprir.

Eu pensei muito, fiquei ansioso, mas depois dei uma relaxada e pensei sobre qual era o conceito da culinária do Mandraka Chef que é, culinária mineira de quebrada, então, aí eu comecei a parar pra pensar de forma diferenciada. No início, eu não conseguia montar nove cozinhas, então eu poderia fazer 3 etapas com 3 participantes. E aí, de novo, caí na rede social porque comecei o primeiro episódio apresentando os jurados e, tentei aproveitar o máximo a rede social já que o primeiro episódio era uma chamada pra galera se inscrever e tal… e depois deles se inscritos e selecionados, a gente teve 31 inscrição para 9 vagas. O que eu achei um número maravilhoso, difícil demais de escolher os participantes. Aí teve vários tipos de cozinhas e eu fui nas cozinhas mais simples que remeteram à mineiridade da quebrada. Mas tinha cozinheiras maravilhosas, gente até estudada e tal.. mas claro que eu não ia escolher uma pessoa dessa porque foge do conceito do programa e, nem sou estudado de gastronomia então, quando eu fosse comentar o prato dessa pessoa, ela ia me dar uma tirada na frente de todo mundo! Aí ela vai acabar com o programa (risos), então o conceito aqui é quebrada.

Aí a gente fez 3 “mata-mata” onde eu salvava 1 participante e os outros 2 iam para o Paredão.. e o paredão ia para votação popular no Instagram, interagir através do Juri Popular. Aí o Instagram deu um “boom” no negócio, o povo assistia, tinha o favorito, tinha um amigo do participante que estava assistindo, então ele mobilizava o povo pra votar, então isso fez com que desse muito bom, o povo foi acompanhando a webserie.. Aí quando ficou apenas 6 participantes eu consegui fazer com que eles cozinhassem juntos. Eu consegui 2 fogões elétricos, muito ruins, consegui um fogãozinho de 2 bocas a gás. Então pra decidir qual participante ia pra qual fogão, a gente fez o mini desafio, ahh o ovo perfeito, por exemplo, fritava o ovo perfeito com gema mole, clara branquinha com o entorno dourado…Cada episódio teve um mini desafio para definir de quem ia usar o fogão. Depois consegui o fogão de lenha porque não tinha como não ter um fogão de lenha no Mandraka Chef, ne?! E ai, enfim, foi dando bom, o povo foi interagindo e a gente conseguiu concluir bem… sempre trazendo a mineiridade, ne? Fazendo desafios bem mineiros de quebrada mesmo, fazendo com que remetesse as pessoas, algo da infância, alguma memória. Deu super bom!

2. O que é ancestralidade pra você?

A ancestralidade pra mim tá ligada desde a colonização, desde quando a galera vem pra esse Brasil através do navio negreiro e vem trazendo vários insumos e coisas da terra de lá, onde a gente começa usar e abrasileirar. E ai também produz coisas muito barato que passa ser fonte de alimento para as pessoas sobreviver nesse período.

Eu vejo o milho, por exemplo, como o ouro da terra. O fubá, a canjiquinha… São coisas baratas, mas é o que mais sustentaram essa galera. Não era arroz, carne… mas era fubá. Entao, da minha época, ancestralidade era minha avó fazendo um anguzinho com couve, uma taioba, fazendo alguns cortes de carne não muito utilizados, essas coisas… Isso me traz uma memória ancestral muito grande, o aproveitamento das coisas, não descartar nada, e a gente vai tentando ressignificar aquilo ali.

3. Como foi a escolha dos ingredientes e das receitas temáticas de cada episódio?

Tinha episódio que era mais minha cara, tinha dia que eu estava mais determinado, tinha episódio que era o que eu achava na feira, porque era eu que montava a feira. Não tinha produção, na verdade. Então era uma coisa que eu acordava super cedo, então tinha que ser as coisas muito bem apresentadas, mas tinha que ser dentro desse negócio da mineiridade. Era uma coisa ancestral ou uma coisa muito mineira. Tinha essa conversa dos vegetais com a carne também que lembrava a ancestralidade, e tinha também participante que só comia vegetais, a gente tinha que pensar muito nisso também, tinha episódios que era uma coisa de memória e outros eram o que estavam dentro da possibilidade do momento. Mas antes teve a conversa com as juradas também, eu perguntei o que não podia faltar nos desafios, por exemplo. Então foi um misto de muita coisa, um pouco de lembrança, um pouco do que tava disponível do momento.

4. Como você entende a ancestralidade da comida mineira periférica?

Eu entendo como um pouco diferente, mas conversa muito, acho que a comida mineira em geral é ancestral. Ela sempre tem uma ideia, algum uso de técnicas vinda da ancestralidade. Agora, a comida mineira de quebrada já é outra coisa, é o rolê da fartura. Periferias e talz, quebrada talz, mesmo que a pessoa não tenha condições, a fartura é algo que ela sempre quer remeter. Agora, a comida mineira em si, ela pode ser chamada de culinária mineira e nem ter o conceito de culinária mineira, já que tem esse fogo cruzado aí que o povo vai arrumando, vai incrementando pra trazer o que é a culinária mineira. Mas na verdade, pra mim, a culinária mineira é o conceito no âmbito ancestral e da quebrada, é o conceito de fartura, o conceito de aproveitar os alimentos. Não é fazer o alimento sumir no prato e falar que nesse prato tem pequi, por exemplo, mas quando você vai ver tem um resquício de pequi.

(…) teve um episódio também que teve tudo a ver com isso, foi quando teve a prova do feijão tropeiro. Eu não tinha panela de pressão para todo mundo, então eu vou deixar o feijão pra eles prontos. Mas pensei em como eu ia trazer esse feijão pra eles e pensei que, na quebrada, a gente tem costume de pegar emprestado um açúcar, um feijão que eu comecei a fazer e lembrei que não tenho ou é porque não tem mesmo. Tendeu? Ai eu to fazendo café e vou pegar o açúcar do fulano e tem até da pessoa compartilhar essas coisas depois de pronto… A quebrada tem muito dessas coisas, a partilha e compartilha, então nesse episódio, eu saio da casa da vizinha com um pote de sorvete que é muito típico de quebrada também… Aí pensei, vou relaxar com esse lance de não ter as panelas, então vou fazer o feijão pra eles, diminuir o tempo de prova e avaliar o tempero e como eles fazem esse feijão tropeiro. E o povo super identificou com esse lance do feijão no pote de sorvete, o povo comentava comigo. Ficou muito legal.

5. Eu vi na websérie que você contrapõe de diversas formas a alta gastronomia, o eurocentrismo e a colonização alimentar. Fiquei pensando sobre o que você disse sobre a fartura, porque a gastronomia francesa tem essa característica da pouca comida, correto? Servir um prato comedido.

Eles falam comida mineira, mas no âmbito francês. A mineira de verdade é no âmbito da fartura, a comida mineira dos nossos avós e antepassados, o povo fazia caldeirão! Se fazia sopa era muita sopa, era um caldeirão. Não era aquele negócio de frango com ora pro nobis e ai só tem um pedacinho de frango e um um sumiço de ora pro nobis ali, só pra ativar a memória. Isso é memória, não é culinária mineira. Isso é memória mineira, eles podem até mudar o nome, porque não funciona. A pessoa vai sair do restaurante e vai querer comer uma coxinha, por exemplo, vai ter que ir de estômago forrado. Fora que é 80 reais, 100 reais o prato. A culinaria mineira mesmo, na verdade, tem vários restaurante mineiros de quebrada, aliás, restaurante não, geralmente o povo não tem nem restaurante, o povo vende em casa as marmitas ou tem um varandinha e tal… Uma coisa mais informal e você encontra comida de R$18 reais, comida caseira e muito bem feita, aí você sai de lá lembrando da sua avó.

6. A internet é o espaço da criação de narrativas e eu vi muito isso no seu trabalho. É o meio que possibilita colocar a nossa história, como a gente pensa. E eu fiquei refletindo como você cria a narrativa, você inverte a lógica hegemônica através do tema da alimentação e da dinâmica do programa. Eu achei incrível quando você inicia o episódio descendo o e recitando uma poesia olhando para a câmera. Ao ver você descendo o morro, me trouxe essa impressão de que, ao mesmo tempo que você questiona a periferia como local rejeitado pela sociedade burguesa, na verdade, você coloca a periferia no lugar de destaque, pois você desce do morro para se direcionar para a câmera, você desce desse lugar especial para conversar com o espectador. Além de que, quando você filma descendo a ladeira, você demonstra geograficamente o que é Belo Horizonte, o que é morar nessa cidade.

Nem tinha pensado nisso, engraçado… Todo episódio eu começava falando a música de um artista, teve música da Elza Soares, Luedji Luna… teve um episódio que comecei falando “bom mesmo é estar debaixo d´água, mas hoje o negócio é com fogo” então nesse dia do morro, eu fiz uma homenagem ao MC Marcinho que ele tinha acabado de falecer. Então, eu desço com uma flor e eu acho que faz muito sentido eu descer pelo morro, entendeu? E começar o programa apresentando a partir dali. Foi essa na verdade a ideia, sempre estar trazendo uma homenagem ou uma fala de um artista periférico, preto de preferência…. até pra gente reverter o negócio da cultura, ne? Isso é cultura. Porque as vezes a pessoa nem sacava que era uma música, mas eu sempre vinha com a música de um cantor pra homenagear a quebrada.

7. A trama da linguagem dos reality show é construída através das ações e edições de vídeo criando uma “hiper realidade”. Os participantes conversam com os telespectadores, pedem voto, explicam como se sentem durante a prova. As narrativas são construídas na disputa, na pressão psicológica. As emoções são exageradas. Só que, no Mandraka Chef a gente vê a espontaneidade, a alegria e até as tretas que aconteceram. Então, ao assistir a websérie, foi possível ver que a realidade não é aumentada. A gente sente a sinceridade, o carinho e a diversão que todos estavam tendo naquele momento. Transmitir a realidade do programa foi intencional?

Então, eu sempre assisti Master Chef, inclusive depois que comecei a cozinhar. E eu não sou chefe de cozinha, já me chamaram de chefe, mas eu sou cozinheiro. Eu penso que cozinheiro é muito mais próximo das pessoas, eu consigo chegar muito mais perto das pessoas do que quando a comida é feito por um chefe. Quando vejo que a comida é feita por um chefe renomado, eu já fico com preguiça. E quando eu via Masterchef eu via os jurados humilhando muito as pessoas e já pensei em me inscrever, mas pensava que, se o Jacquin falar comigo daquele jeito, eu não ia aguentar, eu ia jogar o prato e virar as costas. Não vai funcionar, vou lá queimar meu filme e depois que vou ter que me virar com o meu restaurante porque o povo vai pensar que eu sou mal educado. Eu vou ter jogado um prato no chão e o povo vai pensar que eu sou assim. Então eu via que não precisava daquilo, sabe? Então eu vou fazer de forma bem de boa, sem humilhação, de forma descontraída.

Eu sempre dizia, gente vocês estão cozinhando em casa, vocês não estão no Master Chef, isso daqui é quebrada. Então faz igual vocês fazem em casa. Então eu disponibilizava ali uma cervejinha, deixava eles bem a vontade. “Ahh domingo quando a gente tá em casa cozinhando, a gente toma uma cerveja”, então eu deixava o povo bem a vontade. Quer uma cerveja? Toma uma cerveja. Quer um suco? Toma um suco. Um cuidado para relaxar eles, deixarem eles bem a vontade.. Naquela hora que eles iam sentar em frente a câmera para falar sobre a própria experiência, eu falava “Em casa, gente, por favor”, e aí eles zoavam. Isso daí é que vai fazer vocês ganharem, porque eu vou na rua e o povo vai falar que ta preferindo fulano. Não é só cozinha não! Porque o povo não tá aqui para experimentar, quem experimenta é a gente. Então tem que ter imposição, personalidade, isso conta também no Mandraka Chef, e aí eles se jogaram!

  1. . A websérie foi realizada com recursos do FUNDO ESTADUAL DE CULTURA | Protocolo N° 2021.2105.0092/FEC | Governo de Minas Gerais ↩︎
  2. . Quebrada é o termo popular (gíria local) usada para se referir à periferia. ↩︎