por Eduardo Prachedes Queiroz1
Debruçado sobre a bancada, mordendo um pedaço delicioso de cocada, Armando escuta os comentários de uma cliente esporádica:
– Por mim, se desse pra simplesmente tomar meia dúzia de pílulas que dessem conta de todas as minhas necessidades nutricionais… tava ótimo! Comer dá trabalho! Gasta um tempo precioso!
Indignada com o absurdo que acabara de escutar, a cocada que se encaminhava para o esôfago depois de passar pela boca de Armando resolveu voltar para reclamar pessoalmente – ou cocadalmente – com a humana. Esticou duas tirinhas de coco para coçar a garganta do homem, fazendo-o tossir e expelir gotículas que alcançaram o rosto da espantada cliente. As gotículas em protesto carregavam partes ínfimas da quase-engolida-cocada – e todo mundo sabe que quando se trata de cocada, a parte é também o todo – que considerou cumprido o objetivo de reclamar na cara de quem ousou proferir a injúria.
Um pouco envergonhado pela crise de tosse, Armando desculpou-se e desviou o olhar para dentro da cozinha, procurando um ponto em que fixar a atenção. Com as bochechas ardendo, encontrou o fogão e nele se concentrou, contentando-se em pensar que as bochechas do fogão estavam mais quentes que as suas. Sorriu para as seis bocas que lhe sorriram de volta com suas vivas chamas. Armando pôs-se a pensar em como havia algo de especial no aparelho que ele encarava. Na sua casa, não importava o quão desorganizada e suja estivesse a cozinha, era preciso zelar pelo fogão. Foi isso o que aprendeu a partir das tácitas lições de sua mãe, Tássia.
As chamas do fogão acariciavam as panelas e produziam vapores e chiados que conversavam com Armando, chamando-lhe a perceber a importância dos alimentos para a sua vida e a de sua família. Eram o seu ganha-pão. Para colocar comida dentro de casa, Armando cozinhava fora de casa a comida que ia para os pratos dos clientes. E estava longe de ser o primeiro da família a tirar das sustâncias o sustento: seus ancestrais – vivos ou não, consanguíneos ou integrados – construíam essa relação com os alimentos havia muito tempo, e o rapaz certamente carregava um pouco da cozinha de cada uma dessas pessoas.
Sua mãe, a Dona Tássia, criou os três filhos com o salário que recebia de seu emprego como merendeira escolar. Dona Ermelina, sua avó, sobreviveu durante muitos anos às custas dos acarajés que vendia. Tata, familiar cujo parentesco se dava pela proximidade geográfica – era a vizinha-família – e pela parceria com sua mãe – cuidavam uma dos filhos da outra –, viveu até o último dia de sua vida vendendo os bolos que assava em casa. Seus bisavós maternos, Firmino e Mara, sustentaram a si e aos seus com a horta que tinham em casa e com os pães que, amassados e assados diariamente, vendiam pelo bairro. Antes deles, a sua tataravó Maria Antonieta havia sido acolhida no quilombo do Jabaquara, no litoral paulista – segundo contavam os mais velhos, devido aos dotes culinários da então muito jovem Maria Antonieta, Quintino de Lacerda, o líder do quilombo, haveria ficado pessoalmente feliz em poder contar com sua ajuda na alimentação do povo ali aquilombado.
Deitou os olhos nas seis bocas do fogão. Cada uma com uma personalidade, podiam facilmente ser as bocas daqueles seis ancestrais que ainda cozinhavam junto dele. “Vai ver que é isso”, pensou, “e a primeira boca da esquerda, extremamente silenciosa, é com certeza a de minha mãe”. Sorrindo internamente, deixou o pensamento fluir: “aquela boca com a chama forte, ótima para a fritura, é a de vozinha, Dona Ermelina. E a boca que não deixa escapar muito gás, ótima para fazer doces é a de…”
Acordado de seu devaneio por conta de um barulho de algo que se quebrava, não concluiu o reconhecimento das bocas. Voltou o olhar para além do balcão em que se apoiava e viu, caídos no chão, pedaços do que antes era um prato. Também havia muita comida misturada aos cacos de porcelana. A quase-refeição da ávida-por-pílulas foi para o chão antes que qualquer porção houvesse deixado o prato para entrar no corpo da mulher.
– Eu me distraí e… não sei o que aconteceu e… eu… – desistindo de tentar achar uma explicação, a moça deixou os ombros caírem um pouco – desculpe.
Com um ou dois gestos com as mãos, Armando comunicou à moça que essas coisas aconteciam, que não se preocupasse. Sorriu olhando as fatias de banana da terra que certamente haveriam se lançado ao solo para escapar de serem ingeridas por quem não as valorizava devidamente. “Da terra e para o solo”, brincou em pensamento. Gostou da astúcia daquela moqueca de banana da terra que comunicava à não-comensal que era preciso compreender que comer era diferente de ingerir.
– ’Xa que eu limpo, Armando.
Em resposta a seu companheiro, Armando contrai o queixo levantando o lábio inferior, ergue a mão direita espalmada, fecha um dos olhos e inclina levemente a cabeça balançando-a negativamente. Enquanto recolhe os cacos do chão, volta a navegar em reflexões e memórias. Pensou em como os alimentos haviam sido uma forma de perceber, receber e demonstrar afeto tanto durante os seus pouco-mais-de-quarenta anos de vida, bem como antes de sua existência, nas vidas de quem veio antes dele.
O caruru e o acarajé que sua avó aprendeu nos terreiros que frequentava e que ela preparava também dentro de casa nutriam com afeto. Seu preparo cuidadoso era uma demonstração de carinho registrada em sua memória. Atualmente, quando Armando cozinhava essa dupla, não importando onde ou para quem fosse, havia afeto externalizado, dirigido para quem comeria; mas também havia sempre um carinho de si para si, de dentro para dentro, uma forma de alimentar a sua ancestralidade que tanto lhe importava – o que ele sentia ainda com mais potência nos casos em que o acarajé era comida votiva. Pensou no cuscuz preparado por sua mãe todas as manhãs e que trazia uma sensação gostosa, um quentinho no estômago e no peito. “Pílulas?!” Pensou no cuidado e no afeto que dirigia a si próprio e a seu companheiro quando preparava em casa o seu leite vegetal fervido com hortelã e acompanhado do pãozinho caseiro que tanto lembrava seus bisavós. “Pílulas?!” Pensou no angu que ele aprendeu a preparar desde muito criança e que costumava fazer nos dias frios para surpreender sua mãe que ao chegar do trabalho e ver aquele amarelo alegre na panela, agradecendo pelo cuidado, deixava brotar na cara o sorriso mais bonito e afetuoso que Armando já viu. “Como é que pode alguém preferir as pí…”
Sentiu na ponta do anelar esquerdo uma picada que o trouxe de volta à realidade imediata. A gota de líquido vermelho que brotava de seu dedo espetado por um caco do prato o manteve fora de sua própria cabeça por um par de segundos, mas logo o encaminhou para mais uma reflexão. “Eu sabia que os alimentos cuidavam da minha saúde, mas agora deram até para medir o meu nível de glicose!” pensou com mais um sorriso no rosto. “Brincadeiras à parte…”
Os alimentos e a alimentação eram cura para Armando. Eram responsáveis por manter a sua saúde fisiológica, mas não só; já lhe haviam curado dores do coração, feridas abertas em sua autoestima, a insipidez de certos períodos da vida… significavam a harmonia entre si e o mundo, a superação das cisões entre corpo e mente. Com a alimentação, tratou de inflamações e de enxaquecas, mas também da dor de ter se afastado de sua ancestralidade durante certo período. Ao final dessa reflexão, voltando ao mundo das coisas, Armando percebeu que já havia terminado de tirar do chão os cacos e as consequências de sua culinária.
Com piso e mente limpos, virou-se sorridente para a mulher que fomentou suas reflexões. Ela tinha feito as pazes com os alimentos e agora se dedicava a comer com vagar a nova moqueca. Contente por vê-la interagindo com comida real e lembrando de suas palavras, arreviveu:
– Por mim, se desse pra simplesmente trocar toda e qualquer pílula por uma refeição… tava ótimo! Comer é um prazer! Constrói um tempo precioso!
- Eduardo Prachedes Queiroz é tradutor e pesquisador, nascido na periferia de Osasco e alimentando-se exclusivamente de vegetais há quinze anos. É mestre e doutorando em Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), interessando-se sobretudo por literatura e por questões raciais. ↩︎