Uma comida cheia de mineirice

por Ester Louback e Marcelo de Podestá

Em 2012, foi estabelecido pelo governo de Minas Gerais que no dia 5 de julho será comemorado o Dia da Gastronomia Mineira. Essa data foi escolhida para celebrar a data do nascimento de Eduardo Frieiro. O autor foi o primeiro a se dedicar ao estudo da culinária mineira ao escrever “Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos Mineiros”, lançado em 1966, Belo Horizonte (MG). Os estudos de Eduardo Frieiro contribuíram para entender a cultura alimentar do Estado, que, até hoje, é conhecida por sua culinária com forte demarcação rural em suas iguarias.

Em comemoração ao Dia da Gastronomia Mineira, o grupo de pesquisa “Culturas Alimentares Digitais” entrevistou a historiadora e chef de cozinha Juliana Duarte. Juliana abriu seu restaurante “Cozinha Santo Antônio” há três anos em Belo Horizonte (MG). O local se tornou um ponto de apoio para compras coletivas agroecológicas, além de utilizar ingredientes agroecológicos nos pratos oferecidos no cardápio.

Estudiosa e amante da cozinha, Juliana atualmente se dedica à obra de Eduardo Frieiro e à culinária mineira em seu mestrado. Ela abriu as portas do seu restaurante para falar conosco sobre culinária mineira, internet e de como é trabalhar com alimentos agroecológicos em seu estabelecimento.

1) Como é gerir um restaurante que trabalha com produtos agroecológicos em seu cotidiano? Quais são os desafios e os benefícios que você percebe?

Isso para mim já era uma coisa que estava nos princípios que eu estabeleci quando decidi abrir o restaurante. Eu falo que, para nós, aqui, o tempo é o nosso mundo… É o tempo da natureza, é entender essa questão dessas sazonalidade e respeitar… É o tempo da história, que é entender o que são as nossas raízes, né?! Conversar com as nossas raízes, mas ter os pés no presente e olhar para o futuro… E o tempo das pessoas também, né? Tem o tempo da vida de cada um… Tentar, na medida do possível, respeitar o tempo das pessoas, inclusive, o tempo que as pessoas gastam aqui. Isso foi uma das primeiras coisas que eu escrevi quando eu pensei em abrir esse restaurante, acho que tem tudo a ver pensar o alimento dessa forma e, portanto, ter fornecedores que me permitem realizar esse propósito. Não é só um discurso. Porque é difícil, é muito mais fácil pedir as coisas no sacolão, tem sempre tudo lá. Eu uso produtos de sacolão, mas apenas de lugares onde tem um cuidado na escolha do produto, onde vende produtos orgânicos também… Mas hoje eu posso afirmar que 85% ou 90% que vai para o prato das pessoas que comem no meu restaurante vem de hortas agroecológicas ou são produtos orgânicos… Eu sei de onde está vindo aquele alimento que eu tô colocando no prato. Isso é muito legal e é difícil fazer.

2) Essa prática envolve outro conceito, né? Se você oferece sempre o mesmo produto, você não vai conseguir lidar com essa sazonalidade.

Por exemplo, hoje teve couve-flor porque estamos na época dela. A couve-flor é queridinha, todo mundo gosta dela, mas nem sempre eu tenho ela. Então, eu nem coloco as coisas que são muito específicas no cardápio. Eu tenho o cardápio executivo, que muda de terça a sexta, e a cada semana é uma coisa, cada dia é uma coisa. E eu tenho cardápio à la carte. Por exemplo, o prato que tem mais legumes aqui é o que se chama “Terra à vista”, nele eu trabalho com arroz vermelho da Serra do Cipó e legumes. Aí, os legumes eu coloco o que a gente tiver, entendeu? Não está escrito no cardápio quais são os legumes… Tem cliente que pergunta o que que tem no restaurante, mas eu brinco que precisa perguntar o que é que não tem, porque aqui a gente tem praticamente tudo. Eu trabalho com praticamente três fornecedores, então a gente vai mesclando.

3) No seu Instagram, consta que seu restaurante tem comida diversificada, não é um restaurante de comida tradicional mineira, mas as refeições são “cheias de mineirice”. O que você identifica como mineiro na comida que prepara?

É um restaurante que está em Minas Gerais e, por estar em Minas Gerais, a gente tem muito da comida dos mineiros aqui, mas eu não faço só isso. Aí a gente vai entrar naquela discussão o que é a comida mineira, né? Como que a gente vai definir o que é comida mineira? Se a gente fizer uma definição da comida mineira a partir de pratos típicos, então eu vou te falar que eu não faço apenas comida mineira, mas eu trago muito dessa culinária no nosso cotidiano. Porque eu faço, eu adoro fazer uma costela com canjiquinha, um franguinho com angu e quiabo… Não é um restaurante de comida mineira, mas de casa mineira. Porque na minha casa, a gente comia essas coisas durante a semana, mas nos finais de semana a gente comia outras coisas. A gente tem curiosidade com o mundo, né? A gente come o que tem e também deseja o que não tem, temos muita curiosidade com a comida do mundo, então a gente cozinha pratos de outras regiões. Eu cozinho pratos franceses, por exemplo, e na época do pinhão eu coloco um pinhão, um ingrediente da nossa culinária, por exemplo. Eu vou fazendo umas brincadeirinhas com a comida. Eu coloco um jeitinho nosso nas coisas que não são tão nossas.
Por exemplo, eu sirvo bacalhau. Apesar de bacalhau não ser entendido como comida mineira, eu tenho essa teoria de que é comida de mineiro, porque desde o século XVIII a gente tem comprovação que comia-se muito bacalhau em Minas Gerais. Vai entender, né? Não tinha peixe fresco, então se comia peixe salgado, e o bacalhau era um peixe com preço acessível. Então eu faço, eu tenho dois preparos de bacalhau aqui, tem um que é totalmente mineiro. É uma receita que eu criei a partir da descrição do livro que se chama “minha vida de menina”, que é uma menina que viveu em Diamantina no século XIX. E aí ela fala que nos dias de sacrifício, eles comiam bacalhau com abóbora, angu, feijão e couve. Eu montei um prato com esses ingredientes, e é uma delícia! É mineiro? É mineiro.

Tem o “bacalhau abraço”, que tem palmito pupunha, finalizo com couve e ovo caipira… Eu sempre dou um jeitinho… Inclusive, se você for estudar a história, você vai ver que tinha vários tipos de palmitos, comia-se muitos palmitos aqui. Quando a gente elege os pratos típicos de Minas não tem nenhum com palmito. Cadê os palmitos que a gente comia? Tudo isso é uma construção e a gente tem que ampliar essa ideia do que é comida mineira para gente poder entender o que a gente come, e também entender a nossa cultura alimentar.

4) Vi que você utiliza uma linguagem muito afetiva nos seus post e nas interações com seus seguidores. Para você, como o afeto está relacionado à culinária mineira?

Eu acho que a comida está ligada ao afeto. A primeira coisa que a gente aprende na vida é comer. Eu acho que as pessoas sentem muito isso, a comida ligada ao afeto porque eu trabalho muito com a coisa das memórias… Eu sempre achei essencial fazer uma comida que nem a da casa da gente, acho que isso acaba criando essa conexão… Aí até esse respeito que eu procuro desenvolver e tratar também com a nossa história, acho que é uma conjunção de coisas que faz com que as pessoas tenham muito essa percepção.

5) Essa intenção que aparece nas redes sociais do seu restaurante está muito ligada à comida mineira e a comida como lugar do afeto, enquanto se formos pensar em uma cozinha gastronômica internacional, ela talvez separe um pouco esse lugar do afeto da comida. Portanto, te pergunto se a base da nossa cozinha mineira é o afeto ou será essa cozinha mais pé no chão, agroecológica, sazonal que necessariamente vai ser mais afetiva?

Eu acho que [são] as duas coisas, porque o mineiro é muito hospitaleiro, ainda que seja uma construção que a gente foi reforçando, essa característica do mineiro ser hospitaleiro, de abrir as portas da casa, de receber, de fazer questão, de oferecer um cafezinho… ‘Eu vou oferecer um cafezinho para vocês agora e se não aceitar é desfeita’… Eu acho que a gente cultivou esses hábitos e o mineiro tem muito disso mesmo, nós fomos educados dessa forma. A minha mãe mesmo, eu digo que ela não gostava de cozinhar, mas era cozinhando que ela demonstrava afeto.
6) Vejo que você coloca sua cara nas redes sociais. Tem muitas fotos suas com os alimentos. Como que é para você compartilhar a sua experiência pelas redes?

No começo foi necessário, eu queria falar, eu queria mostrar que “ó, sou eu que tô aqui, eu tô fazendo!”. Eu te juro que eu não pensei “vou me exibir”, “vou aparecer”, até porque foi muito natural… Eu acho isso meio louco, mas é tão espontâneo, porque quando eu comecei eu queria mostrar as coisas que estavam chegando aqui… Chegava aquele tanto de verdura, esse negócio lindo! Eu queria é que as pessoas vissem, entendessem o que era aquilo! Entender que era exatamente isso que eu ia colocar no prato delas!

Às vezes, eu sou questionada para mostrar os pratos. Eu até mostro, mas isso tudo é uma estratégia que veio com os ingredientes. As coisas que chegam de Jaboticatubas, o cheiro… Na época das abóboras, você compra abóboras, mas você não sabe o que virá pra você. Se vai vir uma, duas, três… Às vezes vem uma abóbora cumprida, outra achatada. Você nunca sabe. E é divertido isso! É muito legal.

7) Você acredita que a internet interfere nas disputas narrativas sobre biodiversidade e o que entendemos como comida mineira?

Com certeza! A internet cria discursos, cria narrativas. Vai batendo na mesma tecla e vai criando aquilo, e você vai entrando, homogeneizando o que é a comida mineira… Você vai vendo as modas, a comida tem moda. Independente da internet, a comida tem moda.

8) Por fim, pra você, o que é comida mineira?

Essa é a pergunta que não quer calar! Muitas pessoas me perguntam isso, meu desafio hoje é mudar a cabeça e mudar o conceito do que que é comida. Antes de falar o que é comida mineira, é importante falar o que é comida, porque a comida não se resume em ingredientes e a pratos. Comida não é só isso. Comida é o que a gente escolhe, é como a gente faz, é como a gente serve, é como a gente se relaciona com aquela comida, como que a gente estabelece e se sente pertencente a um grupo a partir daquela comida.Pra mim, comida mineira é isso, é um conjunto de coisas. Esses pratos que foram elegidos como pratos típicos mineiros, é a forma que a gente abre a porta da casa e convida para entrar, é como a gente assenta na mesa e conversa e come com calma, é a forma de como a gente prepara a nossa comida, é um jeito de fazer a comida mesmo. É o jeito da gente falar, é as palavras que a gente escolhe, a gente tem um vocabulário. Por exemplo, mineiro não chama canjiquinha de quirela, isso não é a nossa canjiquinha. O vocabulário também compõe esse universo do que é a comida mineira. A minha batalha é ampliar essa nossa visão, entender que os ingredientes que a gente utiliza não exclusivos, outros lugares também utilizam esses mesmos ingredientes, mas a forma que a gente se relaciona com esses ingredientes é diferente. É nossa. Isso também faz toda a diferença.