Eu faço o que eu gosto de comer

por Natália Ferreira Barbosa

Em celebração ao Dia da Gastronomia Mineira, a equipe do Projeto Culturas Alimentares Digitais entrevista Dona Nenzinha, moradora da comunidade de Abóboras, no município de Montes Claros, onde atua como uma liderança local e, podemos dizer, nacional.

Dona Nenzinha é uma cozinheira nativa, guardiã agroecológica, detentora dos saberes do plantar e do transformar o alimento, quem resultam em uma comida que nutre a alma, que enche de afeto e amor. Cozinheira de mão cheia, uma “mãe” que acolhe, cuida e luta para a preservação do Cerrado, a permanência dos jovens no campo e para manter vivas as tradições, está sempre participando de eventos e feiras, compartilhando o seu saber.

Para a senhora, o que é comida mineira?

A comida mineira é ela, essa comida, né? Que move pessoas daqui de Minas é uma tradição mesmo que a gente tem, né? De usar essa comida de forma que a gente sabe, que é uma comida saudável, é uma comida que muita gente gosta, maioria das pessoas gostam da comida daqui de Minas.

Para a senhora, quais seriam os ingredientes principais da comida mineira?

O arroz e feijão tropeiro, né? Carne, beiju, farofa, farofa de mostarda, essas coisas assim, que a gente usa no dia a dia, que eu acho que é a comida mineira, é essa comida simples, mas essa comida saudável, comida que todo mundo gosta, dessa alimentação que é preparada aqui. Farofinha de ovo, bem naturalzinho, uma linguicinha, um torresmo, carne de sol com mandioca, que a gente mais gosta aqui.

A senhora cultiva alimentos agroecológicos. Como a senhora vê o uso dos alimentos agroecológicos e nativos na cozinha mineira?

É um orgulho muito grande. Eu, por exemplo, na idade que eu estou, faço questão dessa a alimentação saudável, que a gente fala de dentro do coração. Ela é arrancada de dentro do coração. Para a gente e para quem vai se alimentar com aquela comida, né? Não é luxo, é aquela comida simples, uma comida boa, uma comida bem feita, caprichada. Uma farofa de feijão, farofa de andu, essa que a gente usa e que a gente vai lá colhe, maior prazer, maior orgulho, e a gente saber que a gente tá produzindo o que a gente vai alimentar e vai alimentar as pessoas, né?

E o cozinhar para senhora? A senhora cozinha desde criança? Como que a senhora despertou o desejo pela cozinha?

É do jeito que a gente foi criado, né? Dessa forma, aprendendo, vendo fazer, e a gente foi pegando gosto por isso. Eu, por exemplo, eu faço o que eu gosto de comer, né? Porque eu fazia era beiju, essas coisas tudo, alimentação. Aprendi com meus pais, avós que faziam aquela comida assim. Mas o que eu mais gosto é a fartura, sabe? Entendeu? Porque cê vai ali, cê tem de tudo, cê faz assim, tem aquela fartura, naquela singeleza, mas só de alimentar as pessoas com fartura. Esse ano eu vou lá pra Expomontes1, por exemplo, faço minha comida lá, só que é muita comida, mas é a mesma comida que faço em casa, eu tenho o prazer de servir para o pessoal lá na Expomontes.

Quais comidas que a senhora vai preparar esse ano na Expomontes?

Estou querendo fazer galinhada, arroz com farofa, frango caipira e pirão. E uma coisa que nós não podemos fazer lá é o arroz com pequi e nem feijão tropeiro. Aí a gente fica inventando. ‘Ah, então cês não podem comer o arroz dela?’ e diz que não aceita a gente fazer não.

Por que não pode?

Porque lá dentro é da agricultura familiar e saber que é o básico nosso e nós não temos o direito de fazer. Antes a gente tinha, hoje é tirado da gente, quatro anos que nós não podemos fazer lá dentro. O pessoal já gosta muito da comida nossa, né? Que é a comida boa, inclusive o dia que o cara foi dar entrevista lá, o da vigilância sanitária, que foi dar o curso pra nós, aí ele falou que a comida nossa é a comida boa, então a gente fica orgulhoso e é isso que isso incentiva mais, né? A gente fazer parte dessa Expomontes, que é enorme, e assim o povo gostar da comida. É coisa que a gente faz por amor mesmo, né? Por amor.

E quando a gente fala do pão de queijo, a senhora acha que representa mesmo Minas Gerais?

O beiju representa mais. E representa mais porque o pão de queijo é tradicional não é só de Minas, eu creio que não é, né? Tem muita gente que gosta, mas o beiju em si eu creio que ele tem mais reconhecimento pra nós.

O que a senhora acha do uso dos produtos da biodiversidade na cozinha mineira e a divulgação do uso desses produtos?

Eu acho que esse produto agroecológico, que é produzido da forma correta, que tem que usar eles, eles são de verdade, né? A divulgação, ela tinha que ser mais ampla e valorizar mais o que é, né? Da terra mesmo que a gente produz, né? Porque eles fazem muito, é entusiasmo e faz muita beleza e tudo e acaba que a gente fica meio que “recantilhado”, né? Eu acho que mudar um pouco, né? E valorizar mais esses produtos.

A senhora tem visto na internet alguma postagem ou até mesmo a televisão falando sobre a comida mineira, alguma coisa?

Eu assisto o Terra de Minas.

E como que a senhora relaciona essas reportagens, o que estão falando lá com a comida mineira?

Falar é fácil, né? Não é muito fácil, às vezes as pessoas mostram aquela coisa bonita e tudo, mas não mostra a realidade, né? No dia a dia. É poucas as pessoas que eles entrevistam que mostram a realidade. De ir lá na horta, né? Um ovinho caipira, né? Um franguinho caipira. Às vezes eles falam o que é para mais, né mesmo? Mas a realidade para mim é diferente. Às vezes eu estou equivocada, né?

A senhora acha que precisa de uma divulgação maior dos produtos agroecológicos nas redes social, no Instagram, ou até mesmo na própria televisão?

Sim.

A senhora acredita que isso traria um valor, um reconhecimento maior para agroecologia?

Justamente. Valor maior porque eu acho que pouca gente sabe, né? Agora que o povo está começando às vezes a conhecer melhor, né? Através da feira, dessas coisas, mas mesmo assim ainda é pobre. Ainda é pouco. E quando a gente fala assim dessa questão da própria comida, daquela comida que cê vai na horta colher, que cê vai no quintal.

Tem algum restaurante aqui em Montes Claros que podemos encontrar uma comida que representa Montes Claros, que representa o Norte de Minas?

Sim, o restaurante nosso, né? Da cooperativa2. A comida de lá é boa, comida saudável. Assim, infelizmente ainda pega muita coisa do supermercado, mas eles procuram valorizar a agricultura familiar, a menina que tá na direção lá. Olha, ela me dá um valor tão grande. E fala ‘Dona Nenzinha, eu queria tanto que esse dinheiro todo que entra aqui seria só para a senhora e outras agricultoras, né? Que produza da forma correta e ver dinheiro voltar tudo procês, mas aí eu por exemplo vou dar conta, né?, de produzir tudo que é utilizado lá. Tô tentando o máximo que eu posso, hoje mesmo eu tava conversando com ela lá, falou que, o que eu puder fazer da minha produção pra trazer pra cá é um prazer. Ela falou assim, ‘além de ajudar a senhora, né? A gente vai tá representando, né?

E como a senhora vê a divulgação do restaurante do Solar, principalmente aqui dentro de Montes Claros?

Eu acho que tem que divulgar mais, né? E pra ter algum meio, não sei, começar de fazer uma coisa a mais mesmo, né? Mesmo que seja uma coisa boa, chique, ela matuta pra isso. Na divulgação do que é da terra mesmo, que a gente produz e que leva pra lá. Eu acho que já tá bom, bem adiantado, mas ainda falta divulgar.

E para senhora, dona Nenzinha, qual que é a comida que a senhora mais gosta?

Eu realmente gosto de toda comida, não tem nada que eu não gosto. Eu adoro uma arroz de pequi e carne de sol, arroz, carne de sol, entendeu? Tem aquele arrozinho bem bonito assim, um arrozinho com ovo frito, é a comida que eu mais gosto, eu como de tudo aqui, mas essa comida pra mim…
A gente sempre gosta daquele arroz, feijão tropeiro, carne de sol, aquela comida da roça, aí a gente pegou isso, né? A gente tem um amor muito grande por isso e a gente continua, né? Faz isso por amor, que aprendeu dessa forma, na singeleza, e não tem nenhum curso, é coisa que eu aprendi e adoro, é coisa que eu faço realmente, eu gosto de fazer.

Qual receita a senhora recomendaria para as pessoas fazerem em casa e que lembre a comida mineira?

O que você que acha? Feijão tropeiro, arroz com pequi? Qual? a farofa, o arroz, o beiju? Vou falar do beiju.

Como é que é o beiju que a senhora faz lá na roça? Como a Senhora faz?

O que eu faço lá, ele é bem simples, né? Aquele beiju que eu aprendi na com minha mãe, minhas tias, é aquele beijuzinho, né? A gente vai lá, molha a goma, vai na pedra quente lá e espalha, se quiser por uma rapadura, um queijo, que o tradicional mesmo é esse, né? Olha queijo, manteiga, rapadura, só isso.

Dona Nenzinha, como é a relação da comida e do afeto para a senhora?

Às vezes, você faz uma comidinha assim, mas você tem aquele afeto, aquele carinho por aquilo. Aí acaba que a comida ela que alimenta e você fica fácil, feliz com aquela alimentação, mas a comida é gostosa porque tudo que você coloca foi o afeto, foi o carinho, né? Como por aquilo que cê tá fazendo, porque depende muito é disso.

Que recado a senhora daria para chefs de cozinha mineira?

É mostrar mais a realidade, eu acho que pra eles fazer, eu acho importante, eles estudaram pra isso, né? Eles têm uma formação que nós não temos e às vezes nós temos a formação que eles não têm, que eu acho que é isso, aproximar das pessoas, conhecer melhor. Num mudar essa cara da mineiridade, né? Vai muda o nome, o povo não sabe o que que é. Então assim, se eles continuarem fazendo da forma que a gente faz, que eles melhoram mesmo, que é importante melhorar, pra dar eles uma visão melhor.
Que eu acho que é isso que a gente tem feito, né? Arrozinho com pequi, não sei se eles fazem isso, porque às vezes muda muito o sabor, num tira o sabor da comidinha nossa não.

Notas

1_ A Expomontes é a maior feira agropecuária da região, onde dentro há um espaço destinado à agricultura familiar para exposição e comercialização dos seus produtos.

2_ O restaurante Solar dos Sertões é um espaço da Cooperativa Grande Sertão destinado à comercialização dos produtos da agricultura familiar e da sociobiodiversidade. Para além da comercialização, de segunda a sábado, o espaço oferece refeições tendo como base os ingredientes advindos de pequenos produtores e agroextrativistas.