Desigualdades digitais entrelaçadas: questões de raça, classe e gênero

por Arthur Saldanha dos Santos e Maria Vitória
gráficos: Ester Louback / ilustração: Lucas Vidigal @lucasvidee

Neste informativo discutimos as desigualdades digitais, dando ênfase para as diferenças de classe, raça e gênero. Primeiro, abordamos as desigualdades no acesso à internet. Em seguida, discutimos as questões de raça, classe e gênero na internet. Em terceiro lugar, analisamos como as mídias digitais vêm sendo utilizadas pela articulação social como estratégia na ampliação do debate sobre as assimetrias na internet. Finalmente, apresentamos algumas contribuições, desafios e agendas para investigações futuras sobre o tema.

A internet deveria ser um ambiente onde a diversidade é celebrada e estimulada, e as vozes das minorias são ouvidas, respeitadas e utilizadas como ferramentas de aprendizado e inclusão social. No entanto, mesmo que a proposta com a criação dessa rede global de computadores tenha sido proporcionar um local democrático para os usuários, ela não está isenta das desigualdades. Isso se torna um grave problema, pois os próprios algoritmos vêm potencializando, ampliando e sofisticando as diferenças sociais nesse ambiente de conexão.
Já que a internet pode ser considerada uma extensão da vida diária das pessoas, cabe notar que além dessa rede ser desenhada pelos algoritmos, conta com a atuação de profissionais, com vivências também fora desse ambiente, portanto, as assimetrias também resultam das experiências não digitais dos usuários. De outro modo, os comportamentos digitais são operados a partir das possibilidades que determinadas plataformas apresentam, bem como resultam das experiências digitais e não digitais vividas pelos usuários e profissionais, que são compartilhadas nesses ambientes. Cabe especificar ainda que as principais desigualdades relacionadas ao mundo digital são as diferenças de raça, classe e gênero.


O acesso à internet no mundo vem crescendo intensamente nos últimos anos. O relatório de notícias digitais apresentado pelo Relatório “Digital 2022: Global Overview Report” aponta que o número de usuários que acessam a internet regularmente (usuários ativos), atingiu em janeiro de 2022 o patamar de 4,9 bilhões de pessoas (Figura 1). Entretanto, o aumento no acesso à internet não é sinônimo de equidade digital. Pelo contrário, esses dados globais quando analisados minuciosamente por países ou macrorregiões denotam claramente que as desigualdades digitais têm cor, raça e gênero.

Figura 1 – Acesso à internet no mundo.
Fonte: Datareportal (Digital 2022: Global Overview Report).

Os dados estatísticos oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, lançado em 2017, sinaliza a persistência da desigualdade social relacionada ao acesso à internet no Brasil, à posse de telefone móvel e ao uso pessoal de celulares (Figura 2). De acordo com o relatório “A desigualdade digital no Brasil”, produzido pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a desigualdade digital é “a disparidade na capacidade de acesso aos benefícios sociais e econômicos proporcionados pela internet e pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs)”. O relatório aponta ainda que a desigualdade digital no Brasil é marcada por “grandes diferenças regionais, de gênero, de idade e de escolaridade”. Em outras palavras, a desigualdade digital é um problema social que afeta especialmente os grupos mais vulneráveis da sociedade.

Figura 2 – Acesso à internet no Brasil. Fonte: IBGE, 2017.


Não há dúvidas de que várias situações de preconceito e desigualdades existentes nas relações face à face também possam ser reproduzidas no ambiente digital. Tratando-se das tecnologias digitais compostas por mecanismos algorítmicos, poderíamos até afirmar que ações e/ou expressões racistas e preconceituosas podem ser ampliadas com a agilidade e eficiência do compartilhamento de informação e conteúdo online.
Para que a comunicação digital aconteça e seja concreta para os usuários, é necessário que pelo menos dois indivíduos estejam conectados na rede (sem a necessidade de simultaneidade), utilizem a internet e se interessem pelo mesmo assunto mobilizado na conexão, mesmo com oposição de assunto. Mas isso não é tão prático assim, pois o acesso à internet ainda é um problema para muitas pessoas, sobretudo aquelas em situação de vulnerabilidade social (Figura 3).

Figura 3 – Acesso ao telefone móvel no Brasil. Fonte: IBGE, 2017.


O Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA) aponta que as desigualdades digitais, particularmente as desigualdades raciais, estão relacionadas com classe e renda. Esses problemas perpassam a localização de residências (periferias ou espaços rurais), condições econômicas e culturais de acesso à internet. Visto por esse prisma, a desigualdade por trás do acesso à internet é multifacetada, ou seja, está atrelada também à necessidade de habilidades específicas para a utilização mais adequada possível dos recursos e ferramentas fornecidos pelas tecnologias digitais.
As desigualdades digitais são um problema incidente na vida das mulheres negras no mundo. Os pesquisadores, Ronaldo Ferreira de Araújo e Jobson Francisco da Silva Júnior defendem que o racismo na internet funciona como uma prática atrelada às rotinas não digitais de quem pratica que acredita encontrar nas mídias digitais um espaço adequado para a prática do crime e ódio sem uma possível punição.

Esses pesquisadores apontam ainda que mulheres brancas em situação de poder e status na internet, como influencers e celebridades, escurecem a pele, utilizado perucas e tranças, realizando procedimentos estéticos, dentre outros, com o intuito de parecerem um pouco mais com mulheres negras. Esse tipo de apropriação cultural (somando ainda o uso de turbantes e tecidos com estampas) caracteriza aquilo que Ronaldo e Jobson compreendem como blackfishing, ou seja, é uma definição para aquela situação em que uma pessoa branca está fingindo ser negra. Este caso aponta para um problema social de raça articulado com a questão de gênero e classe.

Na mesma linha dessa constatação de blackfishing, a pesquisadora Larisse Louise Pontes Gomes investigou que o processo de transição capilar, compartilhado em mídias sociais, tem sido utilizado como ferramenta estética na promoção do racismo. Nesse ambiente, as pessoas que compartilham fotos sobre a recuperação dos seus cabelos, de processos químicos de longa data, geralmente recebem comentários racistas de outros usuários. Além disso, a pesquisadora também destaca que as representações dessa transição capilar na internet têm sido utilizadas pelas mulheres negras como forma de denúncia dos comportamentos e comentários realizados no seu núcleo de vivência.

A professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernanda Carrera, aponta que tanto o racismo quanto o sexismo estão presentes em bancos de imagens digitais, sobretudo quando tais dimensões são associadas com finança e ocupação profissional. Seus resultados demonstram que os estereótipos de raça e discriminação de gênero estão enraizados no desenho das plataformas de buscas na internet, que reproduzem imagens para buscas como “boss” relacionadas com padrões de homens brancos, em posição de chefia e de sucesso. Em contrapartida, a busca por “secretary” retorna com o padrão de mulher negra com vestimentas e posição de atendente. Estes exemplos mencionados reforçam mais uma vez que os problemas de classe, raça e gênero estão interligados no cenário de desigualdades digitais.

No contexto de tecnologias digitais, as ações de movimentos sociais e de ativismos podem ser caracterizadas a partir dos vínculos sociais executados de modo online, offline ou misto, podendo ser estabelecidos ao longo de todo o processo de articulação e luta social. Nesta perspectiva, essa aproximação e os vínculos estabelecidos auxiliam no compartilhamento de informações de interesse e da própria identidade do usuário conectado. A internet funciona como uma ferramenta de mediação das trocas simbólicas entre os usuários, favorecendo, particularmente, as práticas de movimentos e ativismos.
A internet tem transformado e diversificado as formas de sociabilidade entre os indivíduos e influenciado intensamente nas conformações dos ativismos e ações performáticas no cotidiano de interação. No âmbito dos estudos de movimentos sociais e ativismos, essa situação tem exigido maior atenção por parte dos estudiosos, tendo em vista que se trata de um campo em ascensão nas Ciências Sociais. Parte dessa atenção está na atualização sobre os recursos teórico-metodológicos e elaboração de materiais que possam auxiliar na compreensão dos comportamentos digitais dos usuários.

Embora a internet tenha se configurado como um recurso fundamental na ação dos movimentos sociais, eles não estão livres dos processos de desigualdades nesse ambiente. Em primeiro lugar, a desigualdade digital limita a capacidade dos movimentos sociais se organizarem e se mobilizarem. As pessoas que estão fora da internet ou que não têm acesso às novas tecnologias ficam à margem dos debates e das mobilizações. Além disso, a desigualdade digital também gera desigualdades na capacidade de expressão dos movimentos sociais. As pessoas que estão fora da internet ou que não têm acesso às TICs não têm voz nas discussões sobre movimentos sociais. Elas não podem participar dos debates nos jornais, nas rádios e nas TVs.
Mesmo com todo o processo de desigualdade que perpassa o universo social, a internet possibilita que os movimentos sociais e ativismos recriam novas e melhores formas de manifestação social e política. Além disso, os movimentos e ativismos têm utilizado a própria internet para denunciar as desigualdades digitais de raça, classe e gênero.

Um exemplo disso pode ser confirmado com o estudo empírico do pesquisador Arthur Saldanha sobre o Movimento Afro Vegano. A produção indica que, por meio de ativismo digital e ações pontuais de modo presencial, o afroveganismo tem buscado problematizar o veganismo e o acesso aos alimentos a partir das questões de raça, classe e gênero. Além disso, o movimento também problematiza o acesso aos recursos digitais para o cotidiano de ativismo, sinalizando que as desigualdades digitais têm impedido ações mais concretas por parte do movimento nas plataformas digitais.

Outra iniciativa que merece destaque na luta contra as desigualdades digitais é a produção de dados concretos sobre essa temática no Brasil. Os trabalhos do pesquisador Tarcízio Silva merecem destaque por apresentarem um conjunto de informações valiosas sobre práticas de racismo algorítmico, particularmente o livro “Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais”, lançado em 2022. Essa obra aponta que as tecnologias digitais têm priorizado a lucratividade em detrimento da igualdade social.

Entre tantos problemas de funcionalidade, as ferramentas tecnológicas, plataformas, mídias e algoritmos utilizados no desenho da conexão digital, carregam mecanismos de diferenciação social e exclusão de pessoas, sobretudo pessoas negras. Isso é um problema grave, pois os algoritmos funcionam a partir de comandos de especialista em redes, portanto, reproduzem os mecanismos de desigualdade social. Por essa ótica, um caminho promissor no combate às desigualdades digitais é a formulação de políticas de regulamentação das plataformas e sua estrutura.

Com o uso das redes sociais e plataformas digitais, o racismo presente na sociedade brasileira e nas relações face a face também pode se tornar manifesto no ambiente digital e nas relações online. Nas diferentes mídias sociais e plataformas digitais, comentários, atitudes e comportamentos racistas resultam no racismo online, que são compreendidos como microagressões. Além disso, tais atitudes podem ser amplamente disseminadas através dos algoritmos que, ao processarem as informações contidas nas bases de dados, reproduzem vieses de exclusão social em suas dinâmicas de recomendação e conteúdos personalizados.

As desigualdades digitais são persistentes e se transformam ao longo dos anos em inovações tecnológicas. Esse caráter multifacetado, transitório e indefinido da condição social das minorias nos leva a defender que as desigualdades no âmbito das tecnologias globais de comunicação e informação precisam ser analisadas a partir da ótica da interseccionalidade. Ou seja, precisam ser investigados como processos graves e crescentes de exclusão interligados na sociedade e que precisam ser analisados de maneira conjunta.

Conforme temos abordado nos informativos e em outros estudos sobre culturas alimentares digitais, as tecnologias digitais ainda carecem de análise e dados que possam iluminar as pesquisas no ambiente online. Não sabemos ao certo quais as diretrizes que orientam a criação de algoritmos ou quais os limites da inteligência artificial na interferência sobre o cotidiano social das pessoas. Além disso, embora tenha dado passos largos em termos de fiscalização por parte do governo atual, o monitoramento e a regulamentação dessas inovações ainda persistem como um problema no cenário brasileiro.