O Movimento Social Vegano no Brasil: uma análise do ativismo digital pelas mídias sociais

por Jéssica Santana

A partir das novas tecnologias da informação, o ambiente digital se tornou um componente importante para a vida social dos indivíduos e um novo espaço de atuação dos movimentos sociais. A internet passou a ser um mecanismo de conexão em rede de uma sociedade que utiliza as mídias sociais para se informar, interagir, opinar e se conectar com múltiplos atores, movimentos e pautas. Logo, diante da pluralidade e da abrangência que esse novo contexto apresenta, o campo das culturas alimentares digitais foi criando forma com o compartilhamento de práticas, hábitos e experiências alimentares dos indivíduos na internet.

Todo o conteúdo compartilhado é criado a partir de questões de identificação, crenças, simbolismo e cultura, por exemplo, que moldam as escolhas dos seres humanos e influenciam em suas decisões alimentares, que podem representar a expressão de seu ativismo alimentar.

A agroecologia, agricultura orgânica, vegetarianismo e o veganismo são movimentos voltados para o exercício do ativismo alimentar que privilegiam os meios de comunicação digitais para organizarem suas ações e colocarem suas pautas em evidência (AZEVEDO, 2017; MACHADO, 2007). Diante disso, esse texto tem como objetivo analisar como o movimento social vegano no Brasil exerce seu ativismo digital nas mídias sociais. Esse trabalho discute os resultados de uma pesquisa que dialoga com uma revisão bibliográfica acerca do tema e da análise de conteúdo de dados oriundos a partir da realização de uma netnografia de dois grupos que tratam do veganismo na rede social do Facebook, no período compreendido entre novembro de 2021 e abril de 2022. O estudo demonstra como o veganismo consegue realizar intensas conexões com outros movimentos sociais e como os veganos utilizam as redes sociais para incentivar o debate a respeito de suas pautas, a incorporação de novos adeptos e a organização de suas ações on-line e off-line.

Uma definição bastante difusa sugere que o veganismo:


…é uma filosofia e um modo de vida que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais para alimentação, roupas ou qualquer outro propósito; e, por extensão, promove o desenvolvimento e o uso de alternativas sem animais para o benefício dos animais, humano e do meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos os produtos derivados total ou parcialmente de animais .

THE VEGAN SOCIETY (tradução nossa)*


O movimento vegano é naturalmente carregado por uma intensa contestação social ao denunciar quaisquer formas de exploração dos animais pelos humanos. O movimento surge em 1944, na Inglaterra, por iniciativa do inglês Donald Watson, diante da justificativa de que o vegetarianismo resumia sua condenação ao processo de produção da carne animal, mas não condenava a exploração e o abate de seres sencientes envolvidos no processo produtivo de ovos e laticínios (WATSON, 1944). O movimento foi se expandindo pelo mundo e acrescentando às suas causas, além da proteção dos animais para consumo alimentar, a prerrogativa do fim do uso de qualquer matéria prima de origem animal para a produção de bens de consumo.

No Brasil, o veganismo tem sua origem nos acontecimentos ocorridos nas décadas 1970 e 1980, em que o país é envolvido no contexto da contracultura, do movimento ecológico e da efervescência de uma sociedade mais questionadora e preocupada com a alimentação saudável e o meio ambiente (CARVALHO,2020). Assim, grupos de pessoas começaram a surgir e se encontrar, ainda que com dificuldade devido ao longo tempo para a transmissão e compartilhamento de informações, para se conhecerem e debaterem assuntos em comum em relação a essa temática. Esses encontros começam a se intensificar no final da década de 1990, com o surgimento da internet, que faz com que esse cenário de dificuldade de comunicação seja minimizado (FERRIGNO, 2012).

Os eventos continuam no início dos anos 2000 e, cada vez mais, o veganismo vai se tornando um tema a ser discutido em ambientes presenciais e virtuais, como em congressos, sites, e em campanhas no Brasil. A partir da criação e consolidação das mídias digitais, especialmente das redes sociais, o contato entre as pessoas é intensificado e o veganismo se utiliza desses meios para divulgar, informar e mobilizar os indivíduos em prol de seus interesses. Assim, o movimento social vegano passa ter uma forte atuação no espaço digital, e o Facebook é uma plataforma que consegue expressar como se dá a dinâmica dessa atuação.

Para encontrar os grupos que tivessem relação com o tema escolhido, foi pesquisado no espaço de busca do Facebook os termos “veganismo” e “vegano”. A partir dos resultados, a escolha dos grupos se deu pelo nome, descrição, número de membros e periodicidade de publicações. O grupo “Veganismo e Libertação Animal“ é público, ou seja, qualquer pessoa dentro ou fora do Facebook tem acesso às publicações e informações sobre membros do grupo. Já o “Veganos – a revolução começou” é um grupo privado, o que indica que apenas seus membros podem ver quem participa e as publicações que são feitas. Por se tratar de um grupo privado, é preciso pedir autorização para participar de sua formação, o que incide em respeitar suas regras.

Os dados a serem analisados foram extraídos através das postagens dos membros dos dois grupos. Kozinets (2015) explicita que a maneira como as pessoas começam a se comunicar e a interagir na internet vai deixando rastros e transmissões, que serão a missão dos pesquisadores descobrir e decodificar. As interações online podem ser expressas de diversas maneiras e produzir dados em vários formatos, como gráficos, músicas, produtos audiovisuais, fotos e também em forma textual (FERREIRA; CHIMENTI, 2022). Nessa pesquisa, o conteúdo textual e as imagens, quando estavam associadas aos textos, foram os objetos de análise.

Foram coletadas 553 publicações, nos dois grupos juntos, durante o período proposto. A dinâmica de distribuição das publicações no decorrer do tempo definido, expressa na Figura 1, demonstra que os meses de dezembro, janeiro, novembro, fevereiro, março e abril foram os de maior número de posts publicados, respectivamente.

Figura 1: Frequência mensal da publicações dos posts coletados
Fonte: Facebook – Grupos Veganismo e Libertação Animal e Grupo Veganos – a revolução começou – adaptado pela autora, em 2023.
Figura 2 – Imagem de publicação sobre o caso das búfalas em São Paulo. Fonte: Facebook / Grupo Veganismo e Libertação Animal – adaptado pela autora, 2023.

Essa distribuição não é aleatória. O movimento vegano adapta a sua causa e pautas de acordo com o contexto apresentado. Novembro é considerado o “mês vegano”, pois se comemora o dia mundial do veganismo em primeiro de novembro. No decorrer dos dias posteriores, são divulgados eventos, discussões, receitas e cursos, como uma forma de intensificar ainda mais a exposição do tema. Porém, nesse mês em 2021, ocorreu no Brasil uma situação de repercussão nacional e internacional: o caso de maus tratos a búfalas em São Paulo. Diante dessa notícia, os membros dos dois grupos se mobilizaram para atuar em prol da promoção de uma maior visibilidade do caso, em busca de mudanças efetivas para a resolução do problema.

Os veganos reconhecem a importância que o ativismo digital tem diante de sua principal pauta de atuação, o fim da exploração animal. A Figura 2 apresenta uma imagem de uma publicação, feita em 23 de novembro de 2021, onde um membro do grupo Veganismo e Libertação Animal escreveu:

O ativismo virtual é importantíssimo. Não podemos estar lá ajudando fisicamente, mas de longe podemos fazer muito! Acredite! Precisamos dar ampla visibilidade à situação por meio de nossas redes sociais até que tudo se resolva, devemos lutar pela vida das búfalas! O ativismo físico segue forte, as búfalas estão recebendo cuidados sob muita dificuldade. Estão em campo veterinárias, veterinários e ativistas.

GRUPO VEGANISMO E LIBERTAÇÃO ANIMAL FACEBOOK
Figura 2 – Imagem de publicação sobre o caso das búfalas em São Paulo. Fonte: Facebook / Grupo Veganismo e Libertação Animal – adaptado pela autora, 2023.

O mês de dezembro marca a data que motiva o principal genocídio animal para os veganos, o Natal. Na data, no mundo inteiro, a Ceia de Natal, geralmente, é associada às figuras das aves e do porco, especialmente diante do consumo dos pratos, como o chester, o peru e o tender. Assim, o conteúdo compartilhado nesse mês teve como foco evidenciar como o sofrimento animal é intensificado durante esse período.
As imagens e os textos publicados tinham como estratégia comunicativa apresentar imagens e discursos fortes, retratando e descrevendo cenas de animais sendo abatidos, sendo separados de seus filhotes e ilustrando diferentes maneiras de exploração animal. Os ativistas veganos entendem que quanto maior a aproximação do sofrimento animal ao dos humanos, maior é o impacto que suas ações podem promover para visibilizar suas causas, enquanto movimento social (VILELA, 2017).

O veganismo também tem a capacidade de acrescentar camadas às suas atuações, se aproximando de outros movimentos. As postagens de março e abril de 2022 conseguem exemplificar essa aproximação através do período da quaresma, em que a defesa dos animais continua como tema central do debate, mas acompanhada da questão religiosa. O consumo de carne animal na religião cristã tem na bíblia a sua principal legitimação. O milagre da multiplicação dos peixes, o fato de Jesus ter se alimentando de peixe e ter oferecido o animal como alimento faz com que os cristãos tenham seus argumentos para o consumo de carne animal, já que Jesus é o maior e melhor exemplo para eles. Entretanto, os veganos utilizam a história e a própria bíblia para contestar a aceitação desse consumo, pois povos da época, como os essênios e alguns judeus, possuíam uma alimentação vegetariana, e o versículo “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (BÍBLIA, Matheus, 22, 39) deveria também ser aplicado para os animais (FIORAVANTI, 2020).

Janeiro e fevereiro têm postagens com perfis diferentes das publicações dos meses anteriores, que possuem datas com maiores possibilidades de repercussão. As postagens nesses meses ainda apresentam o tema do combate ao sofrimento animal como central, mas trazem um conteúdo, especialmente, relacionado a adoção do veganismo. Os benefícios que o veganismo pode representar para o meio ambiente, saúde física e mental; as dificuldades que as novas práticas alimentares podem significar perante a uma sociedade que normaliza o consumo de produtos de origem animal e receitas que podem ajudar na diversificação do cardápio alimentar vegano são exemplos dos conteúdos mais compartilhados.

Logo, diante da análise dos dados coletados, é possível inferir que o movimento vegano é capaz de adaptar suas maneiras de expressar seu ativismo de acordo com as condições impostas ao seu redor. Sua organização e atuação se realizam de tal maneira, nas mídias sociais, que escancaram sua capacidade de explorar o debate de seus interesses. O ativismo digital vegano é múltiplo de atores, de estratégias de engajamento, de organização, de ações e de objetivos. No Brasil, essa versatilidade fica evidente desde a sua origem, com a influência de movimentos da contracultura, até o seu desenvolvimento diante das ferramentas que as tecnologias de informação trouxeram para os movimentos sociais. Assim, o ambiente digital consegue comportar o ativismo, as relações, conexões e oposições do veganismo, que no Brasil tem as mídias sociais como fundamentais para sua estruturação, desenvolvimento, crescimento e consolidação como um movimento social.

Notas:

  1. “Veganism is a philosophy and way of living which seeks to exclude, as far as is possible and practicable, all forms of exploitation of, and cruelty to, animals for food, clothing or any other purpose; and by extension, promotes the deve-lopment and use of animal-free alternatives for the benefit of animals, humans and the environment. In dietary terms it denotes the practice of dispensing with all products derived wholly or partly from animals.”(THE VEGAN SOCIETY)

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Elaine de. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Sociologias, v. 19, p. 276-307, 2017.
CARVALHO, Miguel Mundstock Xavier de. Vegetarianismo e veganismo: a expansão rápida de uma nova filosofia alimentar no Brasil. Revista de Alimentação e Cultura das Américas, v. 2, n. 2, p. 89-101, 2020.
FERREIRA, Daniela Abrantes; DE SOUZA CHIMENTI, Paula Castro Pires. Netnografia: desvendando as narrativas humanas em um mundo digital. ReMark-Revista Brasileira de Marketing, v. 21, n. 4, p. 1433-1479, 2022.
FERRIGNO, Mayra Vergotti. Veganismo e libertação animal: um estudo etnográfico. Repositório da, 2012.
FIORAVANTI, Guilherme. Veganismo e Religião. Disponível em: https://www.bloguesia.com/single-post/veganismo-e-religi%C3%A3o. Acesso em: 28 de fevereiro de 2023.
MACHADO, J. A. S. Ativismo em rede e conexões identitárias: novas perspectivas para os movimentos sociais. Sociologias, n. 18, p. 248-285, dez. 2007.
THE VEGAN SOCIETY. Definition of Veganism. Disponível em: https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism. Acesso em: 11 de setembro de 2021.
VILELA, Diego Breno Leal. Consumo político e ativismo vegano: dilemas da politização do consumo na vida cotidiana. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 25, n. 2, p. 353-377, 2017.
WATSON, Donald. Vegan News – Magazine of the non-dairy vegetarians. Leicester: Ed. by Donald Watson, 1944.