Princípios éticos na pesquisa em culturas alimentares digitais

Antes de falar sobre culturas alimentares digitais é preciso discutir parâmetros éticos sobre pesquisas no ambiente online. Algumas questões vão nortear nosso debate, entre elas: Quais são os parâmetros para a regulação ética de pesquisas no ambiente online? Como imagens e fotografias retiradas de redes sociais devem ser inseridas em pesquisas acadêmicas? Quais são os limites éticos dos usos de imagens privadas?

Abordar a questão ética da pesquisa no ambiente online não é uma tarefa simples, por várias razões. Trata-se de um campo novo, com quantidade limitada de trabalhos que abordam o tema, principalmente aqueles que consideram aspectos socioculturais do Sul global. Além disso, a abordagem requer uma compreensão multidisciplinar: deve-se considerar o conhecimento de diversas áreas, tais como bioética, direito, ciências sociais, entre outras. Por último, o campo online se encontra em intensa modificação: a arquitetura das plataformas, as regras impostas aos usuários, o acesso dos pesquisadores aos dados das plataformas.

Diante deste cenário novo, extenso e complexo, o debate aqui proposto visa fomentar a reflexão, dividindo os temas em duas partes: a primeira focará na análise dos parâmetros éticos da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no Brasil e nos documentos sobre ética em pesquisa produzidos pela Association of Internet Researchers1. A segunda parte, que será publicada na próxima edição do informativo, abordará os limites e implicações da regulação ética no Brasil a partir da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), bem como apresentará um cenário sobre perspectivas éticas no campo dos estudos das culturas alimentares digitais.

Conselhos de Éticas e as Pesquisas no Ambiente Online

Em meio à pandemia provocada pela Covid-19, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) encaminhou aos Comitês de Éticas de todo o Brasil um documento intitulado “Orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual 2 . As diretrizes apresentadas foram importantes, já que neste período, devido a restrições sanitárias, boa parte das pesquisas acadêmicas foram paralisadas ou deslocadas para o ambiente online.

Há também possibilidade de críticas ao documento: a orientação da Conep, por exemplo, utiliza o termo “virtual” para se referir às pesquisas realizadas em ambientes que envolvam a utilização: “(…) da internet (como e-mails, sites eletrônicos, formulários disponibilizados por programas, etc.), do telefone (ligação de áudio, de vídeo, uso de aplicativos de chamadas, etc.), assim como outros programas e aplicativos que utilizam esses meios” (CONEP, 2021). Existe um certo consenso acadêmico em relação a não utilização da denominação “virtual” para designar este campo de pesquisa, já que não há uma oposição entre “virtual” versus “real”. Em pesquisas sobre esse campo, Miller e Slater (2004); Lupton (2015), preferem utilizar as oposições: online versus offline, digital versus analógico.

De volta ao documento, vale destacar que as orientações propostas pela Conep objetivaram preservar e proteger a segurança e os direitos dos sujeitos de pesquisa, o que foi, de certa maneira, uma forma de reforçar as diretrizes já estabelecidas pelas Resoluções 466, de 2012, e 510, de 2016, da Conep.

Resolução Conep 466 de 2012: A Resolução 466 de 2012 incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, referenciais da bioética, tais como autonomia, não maleficência, beneficência, justiça e equidade, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito aos participantes da pesquisa, à comunidade científica e ao Estado. De forma geral, ela visa proteger os sujeitos envolvidos, garantindo a todos que os seus interesses serão considerados acima dos interesses da ciência e/ou da sociedade (BRASIL, 2012).

Resolução Conep 510 de 2016: Já a resolução 510, dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em ciências humanas e sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis. A resolução busca incorporar particularidades dos processos metodológicos das ciências humanas no protocolo de avaliação dos Comitês de Ética (BRASIL, 2016).

Em relação aos procedimentos de contato através do espaço digital, algumas importantes orientações devem ser enfatizadas. Por exemplo, os convites para a participação em pesquisas no ambiente online são permitidos desde que não seja possível a identificação dos convidados nem a visualização dos seus dados de contato, tais como correio eletrônico e número de telefone. Como estratégia de segurança, não se deve usar ambiente compartilhado ou “nuvem”. Todos esses processos são estratégias que precedem o “consentimento livre e esclarecido” dos sujeitos de pesquisa. Como já foi destacado por Facioli & Padilha (2019), a ideia de consentimento se apoia na divisão de pesquisas realizadas em âmbito público e na esfera privada. Ao pensar nessa relação no ambiente online, a dinâmica de pesquisa se complexifica. Classificar, analisar e divulgar dos resultados não é uma tarefa simples em ambientes mediados pela tecnologia.

Campos Digitais: apontamentos sobre pesquisa na internet

Anteriormente, já foi reforçado que existem lacunas no debate ético em relação a pesquisas no ambiente online. Um dos bons esforços realizados na área foi desenvolvido pela Association of Internet Researchers (AoIR), entidade que se dedica a construir debates sobre parâmetros éticos em pesquisas interdisciplinares com a internet. O grupo é composto por pesquisadores de vários países, que recentemente lançaram as diretrizes denominadas “AoIR 2019 ou Internet Research Ethics 3.0 (IRE 3.0)”. Trata-se de um documento colaborativo, escrito para pesquisadores, estudantes e desenvolvedores técnicos que enfrentam dilemas éticos no cotidiano de pesquisas. A ideia do IRE 3.0 é construir compromissos baseados no pluralismo ético e cultural. Neste cenário, o documento destaca que, em tempos de Big Data, é necessário realizar pesquisas experimentais que requeiram, além do consentimento esclarecido dos sujeitos, reflexões detalhadas sobre o desenho e o contexto da pesquisa para minimizar os riscos aos envolvidos.

A proposta apresentada defende que a análise ética de pesquisa deve ser um “processo”, que vise desenvolver diretrizes de baixo para cima. Isso significa focar nas práticas cotidianas de pesquisadores, em uma ampla gama de disciplinas, países e contextos, em contraste com uma abordagem de cima para baixo mais usual, que tenta fornecer normas universais. O enfoque defendido no documento é, antes de tudo, reflexivo e dialógico, pois incentiva a reflexão sobre as próprias práticas de pesquisa e os riscos associados em suas etapas.

Com a intenção de discutir a possibilidade de múltiplos julgamentos eticamente legítimos, o documento procura apresentar “diretrizes” e não “receitas”. Desta forma, as questões levantadas pela pesquisa na internet são éticos, precisamente porque evocam mais de uma resposta eticamente defensável para um determinado dilema ou problema (AOIR, 2019).

É importante destacar que na atualidade existe uma série de técnicas de coleta de dados, incluindo raspagem automatizada e acessos via Application Programming Interface (API), que podem coletar informações confidenciais e permitir a identificação pessoal dos sujeitos de pesquisa. Neste cenário, são necessárias medidas concretas para proteger a identidade dos sujeitos e, quando possível, para obter seu consentimento esclarecido. Mesmo que o consentimento individual em projetos de Big Data seja, em muitos casos inviável, os pesquisadores podem tomar medidas para mitigar o risco contra os sujeitos. Por isso, ao se falar de pesquisa de Big Data, deve-se considerar que os dados estão dentro e que dependem de arquiteturas e infraestruturas de informação, incluindo plataformas em um sentido mais amplo, como, por exemplo, Google, Microsoft, Apple e outras empresas.

De acordo com AoIR (2019), embora essas plataformas possam oferecer possibilidades extraordinárias de pesquisa através de técnicas de Big Data, seus designs e funcionamento impõem restrições, em grande parte, fora do controle dos pesquisadores. Cuidados especiais devem ser tomados ao coletar dados de sites de mídias sociais de modo a garantir a privacidade e a dignidade dos sujeitos envolvidos.

Foi discutido até aqui que os documentos, tanto os da Conep quanto o da AoIR estabelecem como imperativo ético central a necessidade de evitar danos aos sujeitos de pesquisa, contudo, no caso das pesquisas no ambiente online, quem são os sujeitos? Um perfil, um avatar, ou mesmo um bot podem ser classificados como sujeitos da investigação? No presente estágio das pesquisas sobre a temática não há respostas satisfatórias sobre a questão. Serão necessários inúmeros aprofundamentos teóricos e metodológicos, ou seja, redesenhar estratégias para um novo cenário, onde a conjuntura e as relações sociais não se dão mais, única e exclusivamente, por copresença ou face a face.

Os apontamentos levantados aqui são fundamentados nas orientações do Ethical Guidelines 3.0, elaborado pela Association of Internet Researchers, e nas diretrizes da Conep. Com a análise desse conjunto de documentos, busca-se destacar que o consentimento livre e esclarecido, a definição de privacidade e os limites entre o público-privado precisam ser analisados de acordo com as lógicas culturais de cada contexto da pesquisa em todo o processo de execução.

As ferramentas tecnológicas se transformam constantemente, como já destacado por Facioli & Padilha (2019). Dessa forma, os parâmetros éticos devem ter capacidade adaptativa para serem avaliados, revisados e alterados, quando necessário. Não se pode pensar estratégias éticas semelhantes para diferentes plataformas: coleta de dados no WhatsApp e Telegram, em grupos privados, diferem da coleta de imagens ou de vídeos públicos no Facebook, Twitter, Instagram ou YouTube. Neste sentido, um dos maiores desafios para pesquisas no ambiente online será o de conciliar os direitos dos “sujeitos” que participam de pesquisas frente aos interesses do desenvolvimento da ciência.

Por fim, deve-se destacar que, ancorado na racionalidade instrumental, o mundo acadêmico ainda não se abriu para a construção de métodos mais reflexivos ou participativos, mas, em um futuro próximo, as pesquisas deverão considerar os interesses dos próprios pesquisados na definição teórico-metodológica do trabalho. Não se deve esquecer também da importância da devolução dos resultados para aqueles que, de alguma maneira, contribuíram no processo de pesquisa.

Referências:

ASSOCIATION OF INTERNET RESEARCHERS. Internet Research: Ethical Guidelines 3.0. AOIR, 2019. Disponível em: <https://aoir.org/reports/ethics3.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2022.

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Resolução nº 466, de 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Resolução nº 510, de 2016.

FACIOLI, Lara Roberta Rodrigues; PADILHA, Felipe André Padilha. Ética e pesquisa em ciências sociais: reflexões sobre um campo conectado. Mediações – Revista de Ciências Sociais, v. 24 n. 1, p. 228-258, 2019.

LUPTON, Deborah. Digital sociology. New York: Routledge, 2015.

MILLER, Daniel Miller; SLATER, Don. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004.

[1] Ver: https://aoir.org/about/

[2] O documento foi encaminhado formalmente aos Comitês de Éticas (CEP) em 24 de fevereiro de 2021.