Por que falar de comida no ambiente digital?

Por que falar de comida em geral? A comida é um elemento central na existência humana, indispensável para a sobrevivência dos nossos organismos (a comida como nutrientes), mas também para a formação daquilo que entendemos por cultura (nossas “ideias” compartilhadas sobre o mundo) e por sociabilidade (nossa tendência ou aptidão para formar grupos e cooperar). Talvez porque ela seja o melhor “veículo” (ou, pelo menos, o mais acessível e universal) que dispomos para representar nossas identidades, comportamentos, desejos, preferências, crenças e costumes, assim como para estabelecermos trocas entre diferentes pontos de vista, ou seja, para comunicarmos. Como sugere Montanari (2008), é mais fácil, em alguns casos, comer “a comida do outro” do que falar a sua língua. A alimentação, portanto, como nos mostra Elaine de Azevedo, pode ser entendida como um “item de informação” e, “através das lentes da comida”, é possível conversar, discutir e analisar várias outras dimensões da vida, como gênero, estruturas sociais, poder, política e prazer.

Compartilhar a comida é um gesto (e uma experiência) que está na base das nossas dinâmicas de grupo – desde os jantares em família, as reuniões entre amigos, os almoços de trabalho até a comida dos rituais, das festas e dos mutirões –, que nos permite criar e reforçar laços de comunhão (despretensiosos ou estratégicos) e expressar sentimentos e emoções. Também nos ajuda a marcar espaços e diferenças entre “nós” e os “outros”, no constante esforço, não necessariamente conflituoso, de definição de um “lugar no mundo”: um ponto na “rede” de onde se interage e se comunica.

Nessa importante tarefa de “gerar e reproduzir significados culturais e conhecimentos associados com a comida” (Lupton; Feldman, 2020), desde sempre contamos com o auxílio de meios de comunicação, que criamos e colocamos à nossa disposição: sejam eles tradicionais (como tratados religiosos, artigos de medicina, livros de cozinha, séries, filmes, programas de televisão, propagandas, noticiários) ou as novas mídias (como as redes sociais, blogs, chats, e-mails, podcasts e outras plataformas), que surgiram com o advento da internet e da difusão dos computadores pessoais e de smartphones.

O que não significa que “comunicamos” nossas ideias sobre comida porque temos os “meios” (as mídias) para isso. Nossas motivações, tanto pessoais quanto sociais, prescindem de uma determinada tecnologia e os usos que fazemos dela nem sempre estão implícitos na mesma. As tecnologias, porém, expandem as oportunidades de nos conectarmos, de criarmos, representarmos e compartilharmos conteúdos que nos interessam, como, por exemplo, assuntos relacionados a comida e as práticas alimentares. Da mesma forma, novas tecnologias são capazes de gerar impactos e mudanças profundas (e muitas vezes imprevisíveis) em todo o ciclo da alimentação, desde a produção, a divulgação, a venda, o transporte e o consumo de alimentos (por exemplo, introduzindo novas ferramentas para o trabalho no campo; reformulando o papel da publicidade e dos meios de divulgação tradicionais, assim como dos profissionais responsáveis por produzir, selecionar, editar e publicar conteúdos; fornecendo plataformas para compras pela internet ou de conexão entre produtores e compradores; entre vários outros) (Lupton; Feldman, 2020).

A alimentação é, hoje, uma pauta recorrente nas discussões cotidianas não só pela “essencialidade” do argumento, mas devido à importância e à iminência de nos lançarmos em um debate mais profundo sobre a relação entre a produção da comida e os grandes desafios (para não dizer problemas) ambientais, sociais, políticos e econômicos contemporâneos. Questões como o nível grave de insegurança alimentar, que afeta uma parcela considerável da população, até os efeitos do desmatamento, da poluição ambiental e das “epidemias” de doenças crônicas (como diabetes, hipertensão e obesidade) são sinais claros (para quem quer lê-los) do impacto gerado pelos sistemas e modelos globais de produção intensiva de alimentos e de industrialização da comida.

O ambiente digital e as novas tecnologias são incorporadas nas dinâmicas dominantes do poder político e econômico que estão por trás dessas problemáticas e de seus efeitos, reproduzindo “online” os mesmos padrões de discriminação, desigualdade e oportunismo com os quais operam no mundo “concreto”. Essas relações são explicitadas quando se analisam questões como a disparidade de acesso às novas tecnologias ou a orientação tendenciosa e direcionada no uso de algoritmos (aprofundamento +). Mas esses mesmos recursos também oferecem possibilidades inéditas para iniciativas de apoio mútuo e de solidariedade, assim como para a promoção de sistemas produtivos mais sustentáveis, através da difusão de temáticas como a agricultura urbana, a agroecologia, a valorização das culturas locais e tradicionais, a redução do desperdício alimentar, o consumo consciente (das escolhas éticas e do boicote até o mindful eating). Além disso, permitem a criação de comunidades temáticas e de interesses comuns, incentivando a participação horizontal, a colaboração e o compartilhamento na construção e fortalecimento de sistemas e modelos alternativos, de ativismo alimentar e de advocacy.

As discussões que permeiam o universo das culturas alimentares digitais são amplas e desafiadoras. É preciso mergulhar fundo nas “emaranhadas relações entre pessoas, comida e tecnologia” (Lupton e Feldman, 2020) para podermos explorar e explicitar as formas como esses recursos se tornaram fundamentais para a reprodução de práticas e de significados relacionados à comida no mundo atual, seus usos, efeitos e possibilidades (+). Ao refletirmos sobre como estamos usando as tecnologias (as formas, as finalidades, os conteúdos e os comportamentos), nos deparamos com o campo das motivações humanas (sejam elas intrínsecas, pessoais, ou extrínsecas, sociais), que se refletem e se estabelecem no diálogo e na apropriação dos meios e das técnicas, mas que ultrapassam os significados e os limites inseridos ou programados nessas mesmas plataformas e ferramentas.


Nesse percurso, daremos atenção especial às novas concepções, esforços e estratégias de ativismo alimentar (na busca por reconhecimento, visibilidade e no combate à desigualdade de oportunidades), que se reforçam e se transformam no ambiente digital. Nosso primeiro passo será analisar a forma como os movimentos sociais têm se relacionado com as redes digitais, entre eles os agricultores urbanos e rurais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Slow Food e outros mais. Uma longa caminhada que não busca respostas ou fórmulas, mas elementos para colaborar com a discussão e com a compreensão desses novos fenômenos e comportamentos.