Introdução sobre o campo das “Culturas Alimentares Digitais”.

O campo das culturas alimentares digitais é recente e busca dar conta, particularmente, das múltiplas representações e práticas relacionadas aos alimentos em mídias sociais. Em outras palavras, as culturas alimentares digitais se voltam para o cotidiano das pessoas que se conectam à internet, compartilhando suas rotinas e experiências alimentares nas mais distintas realidades globais, podendo ser em forma de compra e venda, ativismos, dietas, estilos de vida, receitas, crenças, entre outros.

As plataformas de mídias digitais são amplamente utilizadas no cotidiano da sociedade contemporânea, perpassando gerações, rotinas e estilos de vida. Para alguns estudos, não há consenso sobre os benefícios e as consequências da internet na vida diária das pessoas (HARTMANN, 2013; LUNDBY, 2014), que revelam ainda importantes informações sobre os acessos e usos dos usuários nestes espaços. Em suma, o que se observa é que cada vez mais a internet vem sendo compreendida como uma extensão da vida não digital das pessoas, das suas interações e culturas, ou mesmo uma ação diretamente ligada às experiências de consumo e, mais especificamente, às rotinas alimentares dos sujeitos (SCOTT, 2020).

Neste contexto digital, as práticas alimentares podem ser analisadas como a produção de uma ampla variedade de “retratos” de atividades de aprendizagem, preparação, escolha e consumo de alimentos, sendo marcadas ainda pelas diferentes possibilidades de compartilhamento entre as pessoas no uso cotidiano das tecnologias (LUPTON, 2020). As escolhas alimentares perpassam a identidade do consumidor, a conveniência, o preço dos produtos e a consciência (maior ou menor) das consequências do que é consumido (BELASCO, 2008). A alimentação exerce uma ação concreta nas relações sociais, que seguem ancoradas em trocas simbólicas, significados, expectativas e comportamentos, que possibilitam o conhecimento e entendimento dos diferentes padrões culturais das sociedades (CARVALHO; LUZ, 2011; POULAIN, 2012; AZEVEDO, 2017; NIEDERLE et al., 2021). Portanto, culturas alimentares representam as identidades dos grupos sociais, suas práticas, costumes, saberes e tradições em torno dos alimentos, podendo ser entendidas ainda como a manifestação social de um modo de vida permeado pelo alimento, pela comida e pelo comer.

A primeira vez em que o termo aparece como um campo de estudo foi no livro “Digital Food Cultures”, cuja tradução livre é “Culturas Alimentares Digitais”. A obra foi organizada pelas sociólogas Deborah Lupton e Zeena Feldman, e o seu lançamento ocorreu em 11 de março de 2020. Localizados no norte global (Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Europa continental), os autores e autoras apresentam diferentes estudos sobre a incorporação das tecnologias digitais ao dia a dia das pessoas a partir da alimentação. A partir desse livro, surgiram outras produções relacionadas a este campo, principalmente artigos científicos e um livro sobre métodos de pesquisa para estudos alimentares em plataformas de mídias digitais (Título original: “Research Methods in Digital Food Studies”), organizado por Jonatan Leer e Stinne Gunder Strøm Krogager, lançado em 2021.

Algumas autoras e autores têm se destacado nos estudos das culturas alimentares digitais: Deborah Lupton; Zeena Feldman; Michael K. Goodman; Rachael Kent; Stephanie Alice Baker; Michael James Walsh; Ellen Scott; Virginia Braun; Sophie Carruthers; Morag Kobez; Pia Rowe; Ellen Grady; Maud Perrier; Elaine Swan; Alana Mann; Karen Cross; Suzan Boztepe; Martin Berg; Markéta Dolejšová; Stinne Gunder Strøm Krogager; Jonatan Leer; Michelle Phillipov; Katrine Meldgaard Kjær; Nicolai Jørgensgaard Graakjær; Thomas Mosebo Simonsen; Tanja Schneider; Karin Eli; Tania Lewis; Meghan Lynch; Kerry Chamberlain; Camilla Vásquez; Alice Chik; Fabio Parasecoli; Caroline Nyvang e Anders Kristian Munk.

Os trabalhos de Deborah Lupton, por exemplo, apontam que as culturas alimentares digitais se configuram em uma abordagem comumente voltada para o Norte global, contando com estudos de caso para a exemplificação desse novo conceito nas pesquisas alimentares. O Sul global, especialmente a América Latina, vem dando passos lentos nesse campo de investigação, seja com produções científicas, seja como fonte de estudos relacionados à temática. Ainda que a alimentação e as diferentes práticas no seu entorno façam parte cada vez mais, por exemplo, das agendas de pesquisas acadêmicas, eventos e ativismos no Brasil (OLIVEIRA, 2014; BARBOSA, 2016; AZEVEDO, 2017; SCHUBERT, 2017; PORTILHO, 2020), quando esses temas são relacionados à multiplicidade de formas de utilização da internet e analisados a partir da abordagem das culturas alimentares digitais, percebe-se que se trata de um campo ainda escasso.

Os estudos das culturas alimentares digitais têm desempenhado um papel importante na promoção de reflexões. O compartilhamento dessas temáticas nas plataformas de mídias sociais, como Instagram, Facebook, Twitter e Youtube, por chefes de cozinha, movimentos sociais, influencers1, celebridades, entre outros têm contribuído na construção de pautas ligadas ao alimento, à comida e ao comer (SANTOS et al., 2021). As discussões sobre sustentabilidade, saúde e bem-estar na internet, por exemplo, geralmente são incorporadas às experiências, rotinas e condutas alimentares das pessoas e utilizadas para demarcar seus posicionamentos sobre a alimentação.

Assim, esse cenário de novas configurações dos estudos alimentares no contexto contemporâneo é marcado fortemente pela era digital, podendo ser uma aliada, particularmente a partir do aspecto cultural das rotinas alimentares dos sujeitos, no entendimento das transformações e do comportamentos sociais em torno dos alimentos. Entretanto, esse novo campo precisa se consolidar enquanto abordagem e incorporar reflexões espalhadas pelo contexto global de maneira mais democrática. As contribuições do Sul voltadas para as culturas alimentares digitais, por exemplo, seguem em desvantagem em termos de visibilidade quando são comparadas com as produções do Norte global. Diante disso, torna-se necessário a “valorização das experiências sociais, políticas e culturais do Sul global”, exigindo-se um esforço coletivo no estímulo a essas produções (SANTOS, 2010, p. 13). Ademais, os métodos e estratégias investigativas em torno das culturas alimentares digitais precisam ser ampliados e apontarem caminhos adequados para se fazer pesquisas em plataformas de mídias sociais. Discussões sobre inclusão social, desigualdade de gênero, questão racial, feminismo, LGBTQI+fobia, entre outros temas, precisam fazer parte desse campo de estudo em expansão. Em síntese, as estratégias e as técnicas metodológicas voltadas para os estudos sobre culturas alimentares digitais precisam ser problematizadas e ampliadas à luz dos avanços tecnológicos, levando-se em consideração suas possibilidades, potencialidades, dilemas e desafios para as rotinas diárias das pessoas conectadas, especialmente as alimentares.

Referências

AZEVEDO, Elaine de. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Sociologias, v. 19, n. 44, p. 276-307, 2017.

BARBOSA, Livia. A ética e a estética da alimentação contemporânea. In: CRUZ, Fabiana Tomé da; MATTE, Alessandra. (Orgs.). Produção, consumo e abastecimento de alimentos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 95-123, 2016.

BELASCO, Warren. Food: The Key Concepts. Oxford: Berg, 2008.

CARVALHO, Maria Claudia da Veiga Soares.; LUZ, Madel Therezinha. Simbolismo sobre “natural” na alimentação. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n. 1, p. 147-154, 2011.

FRANÇA, Vera.; FILHO, João Freire.; LANA, Lígia.; SIMÕES, Paula Guimarães. (Org.). Celebridades no Século XXI: transformações no estatuto da fama. Porto Alegre: Sulina, 2014.

HARTMANN, Maren. From domestication to mediated mobilism. Mobile Media & Communication, v. 1, n. 1, p. 42-49, 2013.

LUNDBY, Knut. Mediatized Stories in Mediatized Worlds. In: HEPP, Andreas, KROTZ, Friedrich (Eds.). Mediatized worlds: Culture and Society na Media Age. London: Palgrave Macmillan, p. 19-37, 2014.

LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital Food Cultures. New York: Routledge, 2020.

LUPTON, Deborah. Understanding digital food cultures. In: LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital Food Cultures. New York: Routledge, 2020.

NIEDERLE, Paulo André; SCHNEIDER, Sérgio; CASSOL, Abel (Orgs.). Mercados Alimentares Digitais: inclusão produtiva, cooperativismo e políticas públicas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021, p. 15-22.

OLIVEIRA, Daniel Coelho de. Comida, carisma e prazer: um estudo sobre a constituição do Slow Food no Brasil. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2014.

ORTIZ, Renato. As celebridades como emblema sociológico. Sociol. Antropol. Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 669-697, dez., 2016.

PORTILHO, Fátima. Ativismo alimentar e consumo político – duas gerações de ativismo alimentar no Brasil. Redes (St. Cruz Sul, Online), v. 25, n. 2, p. 411-432, mai./ago., 2020.

POULAIN, Jean-Pierre. Dictionnaire des cultures alimentares. Paris: Presses Universitaires de France, 2012.

ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Gabriela Pedroso Dos. A nova celebridade e o processo de celebrização de influenciadores digitais na mídia social Instagram: o caso Camila Coelho. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2020.

SANTOS, Arthur Saldanha dos.; SOUZA, Isabela Sandri de.; NIEDERLE, Paulo André. O ativismo antirracista e antiespecista do Movimento Afro Vegano nas mídias sociais. Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 57, n. 3, p. 188-298, set./dez., 2021.

SCHUBERT, Maycon Noremberg. Comer fora de casa, as práticas e as rotinas alimentares nos contextos da modernidade: uma leitura comparada entre Brasil, Reino Unido e Espanha. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2017.

SCOTT, Ellen. Healthism and veganism: discursive constructions of food and health in an online vegan community. In: LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital Food Cultures. New York: Routledge, 2020.

1 O termo influencers é utilizado para caracterizar pessoas que utilizam influência na internet como estratégia de marketing, promovendo páginas, produtos e serviços. Na sociologia, principalmente a partir dos estudos culturais, o termo vem sendo associado ao processo de celebrização de indivíduos atuantes nas mídias sociais, configurando-se em um conceito que busca articular representação social à cultura de massa (Rojek, 2008; França et al., 2014; Ortiz, 2016, Santos, 2020; Santos et al., 2021).