Ativismo alimentar
digital e as novas formas de expressão política

Movimentos sociais expressam a organização da sociedade civil na busca por objetivos comuns, centrados contextualmente em mudanças políticas e sociais em determinadas realidades. Esse tipo de organização social pautada na reivindicação, resistência e luta pelas diferentes formas de inclusão social, pode ser caracterizada ainda a partir da construção de um projeto comum entre os atores sociais, tendo como eixo uma ideologia que conecta seus interesses. Destaca-se, por exemplo, as atuações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As manifestações públicas de movimentos como esse ocorrem de diferentes maneiras na sociedade, tais como: passeatas, carreatas, greves, marchas, boicotes, dentre outros.

Com o passar dos anos e com o avanço das tecnologias digitais, novas características puderam ser percebidas nas manifestações dos movimentos, como a mobilização de hashtags (Box 01) como mecanismo de conexão social e a utilização de mídias sociais (Instagram, Facebook, Twitter, Youtube, dentre outros) para o exercício dos ativismos. Na literatura sobre movimentos sociais, esse tipo de mudança no exercício das manifestações dos atores sociais, que passaram a contar também com a internet enquanto meio de dissipação de seus projetos e debates políticos, vem sendo investigada a partir da noção de ativismos digitais1.

Hashtags

A hashtag é um termo associado a assuntos ou discussões que alguém deseja indexar no Instagram e, para isso, o usuário precisa inserir o símbolo de cerquilha (#) antes da palavra, frase ou expressão de interesse. Após a publicação, essa combinação transforma-se em um tipo de hiperlink que leva para outra página com outras publicações semelhantes. As hashtags têm sido amplamente utilizadas como estratégia na ampliação das conexões dos usuários de mídias sociais como Instagram e Twitter. Pode-se destacar, por exemplo, as redes sociais formadas a partir da mobilização de hashtags como #banquetaço e #BlackLivesMatter.

Mas o que a alimentação tem a ver com o ativismo digital especificamente? O sistema agroalimentar global tem sido considerado um dos mais importantes causadores dos problemas ambientais, de desigualdade social e de saúde humana2. Com o advento da pandemia do Covid-19, o sistema agroalimentar confirmou seu caráter latente na promoção e ampliação dos danos socioambientais3. Não é por acaso que, atrelado ao avançar da pandemia, tenham emergido diferentes articulações, organizações sociais, sociedade civil, movimentos e ativistas pelo mundo, na promoção da alimentação saudável, sustentável e justa na internet e fora dela. Tais experiências podem ser compreendidas como ativismos alimentares digitais e/ou não digitais. Esse tipo de luta social comumente gira em torno da solidariedade, da valorização das dietas saudáveis e sustentáveis e dos produtos locais e frescos, e da redução do consumo da proteína animal. Já o sistema de produção desse último vem sendo relacionado à destruição ambiental, opressão animal e problemas de saúde humana4.

Diante disso, os ativismos alimentares digitais podem ser entendidos, também, como novas formas, ações e possibilidades de expressão política visando mudanças sociais a partir da temática da alimentação5. Um novo modelo de expressão política, não no sentido de rompimento entre as ações coletivas mais “tradicionais” e as mais “novas” na luta social, mas sim de continuidades e complementações dessas ações e ativismos, em condições ampliadas e potencializadas a partir do advento da era digital6. Assim, do ponto de vista dos estudos das culturas alimentares digitais7, o ativismo alimentar é a tradução de um conjunto de significados, símbolos, comportamentos e conhecimentos culturais relacionados ao alimento, à comida e ao comer8.

Na prática, como os ativismos alimentares digitais têm contribuído para a formação, ampliação e manutenção da noção de culturas alimentares? Algumas pistas podem ser observadas nas ações e agendas que orientam as condutas do ativismo alimentar digital. Para exemplificar, os estudos sobre o Movimento Afro Vegano têm apresentado, nos últimos anos, um conjunto de ações, que buscam problematizar a noção de veganismo a partir do resgate cultural das práticas alimentares. Além disso, o movimento tem alinhado seus ativismos às demais lutas sociais voltadas para a justiça, sustentabilidade e democracia alimentar. Ações essas que são formadas a partir das conexões entre ativistas de diferentes movimentos (mediados digitalmente em grande parte pelas juventudes), tendo como foco pautas e interesses similares9, assim como pautados nas intersecções raça, classe e gênero.

Algumas iniciativas, como o jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder com o qual opera o Joio e o Trigo nas mídias sociais, vêm apresentando importantes avanços na ampliação da discussão sobre culturas alimentares na internet. Partindo do pressuposto que “comer é um ato político que apresenta implicações sociais, econômicas e ambientais”, esse jornalismo tem utilizado plataformas como Instagram para denunciar e desestimular desigualdades sociais, práticas alimentares injustas, insustentáveis e antidemocráticas no Brasil. Ações como essas podem sim ser interpretadas como um tipo de ativismo alimentar digital ligado à noção de culturas alimentares10, e elas cada vez mais vêm recorrendo à utilização de códigos, símbolos e estilos de comunicação próprios da internet (particularmente das mídias sociais) como ferramentas para ampliação de suas lutas.

Sobre a formação de agendas de pesquisa sobre culturas alimentares digitais no Brasil, alguns passos podem ser indicados: 1) a delimitação do campo de pesquisa sobre culturas alimentares digitais no Brasil e América Latina; 2) a coalizão de grupos, atores sociais, movimentos e iniciativas que atuam na temática da alimentação; 3) a construção de sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos. O primeiro passo justifica-se em função da ausência de debates no Brasil e América Latina sobre culturas alimentares digitais, mesmo tratando-se de regiões com importantes contribuições para a temática cultura alimentar11.
Para os demais passos apresentados cabe utilizar como exemplo uma agenda integrada apresentada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD), indispensável na geração de políticas alimentares, especialmente neste ano eleitoral no Brasil12. Dentre as iniciativas apresentadas pelo grupo, urge a realocação da alimentação para o centro dos debates de políticas públicas, a participação qualificada da sociedade civil na construção dessas políticas e a promoção dos sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis e justos alinhados ao Estado com seu papel de governança multinível e multiescalar.

Destaca-se, por fim, os temas a serem trabalhados nos próximos informativos: estudos empíricos sobre culturas alimentares digitais, técnicas e ferramentas metodológicas para essa temática que vem crescendo nas ciências sociais e aprofundamento nos estudos sobre o debate ético na pesquisa com culturas alimentares digitais.

Referências

1. JOYCE, Mary C. Activism Success: A Concept Explication. University of Washington, 2014.
KUSKOWSKI, Bianca de Oliveira. Ativismo tecnologicamente mediado: transformações do ativismo em plataformas de mídias sociais. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2018, 194 f.
SANTOS, Arthur Saldanha dos. Ativismos digitais do Movimento Afro Vegano: uma análise das narrativas performáticas nas mídias sociais. Tese (Doutorado) – UFRGS, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2022.

2. BLAY-PALMER, A.; CONONARÉ, D.; METER, K.; DI BATTISTA, A.; JOHNSTON, C. (Orgs.). Sustainable Food System Assessment. London: Routledge, 2019.
CLARK, Michael; et al. “Global food system emissions could preclude achieving the 1.5° and 2°C climate change targets”. Science, v. 370/6517, p. 705-708, 2020.

3. ABRAMOVAY, Ricardo. Desafios para o sistema alimentar global. Ciência e Cultura, v. 73, p. 53-57, 2021.

4. BLAY-PALMER, A.; CONONARÉ, D.; METER, K.; DI BATTISTA, A.; JOHNSTON, C. (Orgs.). Sustainable Food System Assessment. London: Routledge, 2019.
NIEDERLE, Paulo André; SCHUBERT, Maycon Noremberg. HOW does veganism contribute to shape sustainable food systems? Practices, meanings and identities of vegan restaurants in Porto Alegre, Brazil. Journal of Rural Studies, n. 78, p. 304-313, 2020.
SANTOS, Arthur Saldanha dos. Ativismos digitais do Movimento Afro Vegano: uma análise das narrativas performáticas nas mídias sociais. Tese (Doutorado) – UFRGS, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Porto Alegre, 2022.

5. MOTTA, Renata; MARTÍN, Eloísa. Food and social change: Culinary elites, contested technologies, food movements and embodied social change in food practices. The Sociological Review Monographs, v. 69, n. 3, 2021.

6. GOHN, Maria Glória. Teorias dos movimentos sociais na contemporaneidade. In: GOHN, Maria Glória; BRINGEL, Breno. M. (Orgs.). Movimentos sociais na era global. Petrópolis, RJ: Vozes, 2ª ed., 2014.

7. LUPTON, Deborah. Understanding digital food cultures. In: LUPTON, Deborah; FELDMAN, Zeena. Digital Food Cultures. New York, Routledge, 2020.

8. PORTILHO, Fátima. Ativismo alimentar e consumo político – duas gerações de ativismo alimentar no Brasil. Redes (St. Cruz Sul, Online), v. 25, n. 2, p. 411-432, mai./ago., 2020.

9. FEIXA, Carles; FERNÁNDEZ-PLANELLS, Ariadna; FIGUERAS-MAZ, Mònica. Generación Hashtag. Los movimientos juveniles en la era de la web social. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 14, n. 1, p. 107-120, 2016.

10. Sobre a noção de cultura alimentar e sua associação com a internet, visite nossos primeiros informativos no www.mesadigital.org.

11. Sobre a necessidade de ampliação do debate dos estudos de culturas alimentares no Sul Global, visite nosso informativo no https://www.mesadigital.org/2022/o-campo-de-estudos/.

12. Visite a publicação em: https://www.ufrgs.br/agrifood/index.php/news/noticiass/405-para-uma-nova-geracao-de-politicas-alimentares-inclusivas-sustentaveis-e-saudaveis-gepad-lanca-documento-de-incidencia-politica-sobre-institucionalidade-das-politicas-alimentares